por José Oliveira
Mais do que o Vietname e os seus estilhaços em surdina (e este pode ser o filme nuclear sobre essa dor calada, intransmissível e resolutamente cravada como as chagas internas que assolaram uma época), longe ainda das bandeiras da contracultura em voga, dos gritados protestos bélicos ou da estética arty muito lá de casa, Five Easy Pieces escancara lentamente as solidões antiquíssimas reservadas a todos os Homens que as despertem, tacteando as zonas escuras dos Génesis até certos dominadores do mundo moderno; e logo fala do encaixe de cada um em cada espaço e tempo; existência, coexistência e a constante irresolução da nossa condição. Um dos mais doridos lamentos - em filigrana e inscrito nos rostos e movimentos dos seus protagonistas - que o cinema teceu, elevou Jack Nicholson ao patamar dos muito grandes, tratou Karen Black como uma criatura imensamente mais complexa do que a sua aparência pode fazer crer, e acolheu a paisagem Americana como órgão indissociável de todo esse corpo em que mal-estar e horizonte lutam desalmadamente, com as cores e o grão da fabulosa câmara de László Kovács. Bob Rafelson, que admirava Antonioni e os grandes cineastas Europeus da altura, olhou tudo com a humildade de um trabalhador sério a dar no duro (ou tarefeiro sem margem para dúvidas) e com a disponibilidade de um genuíno humanista.
I
Não é preciso andar muito para se perceber que Five Easy Pieces encerra e explana um princípio e uma atitude admirável e corajosa de Robert, o seu protagonista. Alguém que mandou às favas uma vida possivelmente rodeada pela erudição, profundeza e inspiração dessa arte interior da música, que não quis estar onde essas grandes questões estão, que não se acomodou a um previsível conforto. Dos planos de abertura onde Bob Rafelson agarra veementemente as lições estruturais e arquitetónicas do desmesurado meio onde o homem surge inteiro e excelso a par do vivificante, assim como nos mostrou King Vidor, essa relação que esteticamente causa o monumental porque daí advêm, até à forma como abandona o "grande" e se cola a um homem para o sentir, acreditando nessa possibilidade, no seu íntimo, numa espécie de prova de vida e de obliteração de um corpo, percebe-se bem os terrenos perfurados. Bob Rafelson vai filmar progressivamente com ruído e o ruído entre todos os polos que se confundem. A dureza sobre a coluna vertical e o pó no rosto da extração petrolífera contra a dureza que custa arrancar notas do piano – essa questão, esse só aparente antagonismo não se resolverá. Se o filme pode ser um road movie é-o interiormente e assim singularmente, as grandes paisagens e as grandes distâncias serão breves mapas referenciais da procura de um lugar e de uma justificação para uma existência – e que se salvaguarde a meia dúzia de quadros que são pura pintura evocativa, crepuscular, algo que fala com William Turner e Edward Hopper, onde os céus só podem ser testemunhas e poder transformador sobre algo. Céus prenhos, cinzentos, onde o sol pede uma oportunidade. Realismo e evocação, eis o segredo e a prática de quem se entrega ao pulsar e ao risco do mundo e não à teoria fácil. De Los Angeles a Washington e aos lagos gelados é um tiro de espingarda porque para aquele ser todos os lugares são os mesmos assim como nos explicou o igualmente foragido porque muito humano Henry David Thoreau.
Não se está bem na terra do petróleo e rodeado dos sugadores monstros, como não se vai estar grande coisa na grande mansão onde tudo existe em abundância, transgressões incluídas. A mulher mundana do bowling e dos rasgados decotes (Rayette) vai dar tantas certezas e calor como a mulher que se emociona com as representações frias de Chopin. A fuga e rebeldia declarada do acomodamento para a selvageria e para o salve-se quem puder não será orgulho ou bandeira de heroísmo, assim como outrora o dom raro não vingou. A vontade de traição ou de grande conquista excita-o tanto como lhe melhora a disposição uma violenta relação orgástica com a barbie libidinosa já referida. Cantarem os casais despidos depois de um dia de trabalho igual ao anterior e ao seguinte ou uma filosófica tertúlia, sem diferença. Como o enternece tanto os discursos ecologistas que se podem ouvir quando se dá boleia ao desconhecido como os pedantes discursos sobre a humanidade condenada. A bruteza e a delicadeza dele, o olhar terno e o desvio de cara são uma e a mesma coisa, verso e reverso de uma qualquer impossibilidade, de um homem quebrado como se quebram os espelhos e depois não se juntam.
Entre os sublimes andamentos da mansão e as cantorias que se escutam no gira-discos da grande metrópole, de um extremo ao outro corre a tristeza, essa tristeza imensa e comovente que sentimos quando no final Robert se olha a um espelho e decide mais uma vez partir rumo à sempre passível epifania. Cerradíssimo plano, cerradíssima decisão. A consciência de uma penosa distopia perene pode matar e por isso anda-se para a frente. O diálogo com o Pai vegetal é sintomático de um tempo e de todos os tempos, existem Roberts que estão sempre em movimento pois têm medo que as coisas acabem mal, medo dos princípios prometedores. E daí larga-se tudo e fica um vazio que rói os ossos. Fica o plano final, um dos mais tristes, surdos e desprotegidos que alguma germinou. Incertezas, todas.
II
Volto a Robert Eroica Dupea e ao meu filme desses tempos, anos 70 ou hoje. Humildes, desgostosos, lastimosos, faiscantes, sem nada a perderem, sem seguro de vida, sem o tapete da salvação. E conservando puramente uma integridade e qualidades que se destacam no meio do supérfluo e das aparências intemporais que todo o modernismo ampliaria até à saturação. Portanto, volto ao meu filme destes tempos. Five Easy Pieces carrega a justeza dos valores primitivos, indestrutíveis, míticos, a par do choro pelo inexplicável degradamento que vai desbravando. Isto, nas formas e no que trata. No cinema e na carne e osso e emoção que o molda. Porque se estamos desde o início ao lado de um desistente, alguém que parece ter assumido a derrota pessoal, lá longe de todas as promessas de consagração, todo o contra-campo disso, os motivos e agressões intoleráveis, essas elipses desmedidas a que só alguns chegam, nunca terão resposta, estarão na expressão e na acção de Dupea, na sua movimentação e no movimento fílmico. O direito a não ficar, a ir com o vento, não vencer. Não por niilismo burguês ou inocência radical, mas por amor. Um outro tipo de amor, muito superior ao banalizado. Amor e violência, a sua inseparável. Dupea afastou-se da música, como outros se tentam afastar do cinema e da sua lei e ordem. Afastou-se da casa e mantem ainda ou eternamente uma guerra matricial. Ambas as coisas parecem não lhe fazer falta, esquecidas ou reduzidas, mortas à força, ou então disfarça muito bem. Mas não cede, não vulgariza, e a cobardia não faz mossa ali. Há por aí alguns, nos passeios e nos cafés de todos os dias, no canto mais escondido da sala de cinema mais recatada ou no antro ainda aberto das quatro da madrugada, em gabinetes atulhados de papéis ou em honrosos cargos administrativos, em todo o lado e em lado nenhum, indivíduos duros que supostamente se apagaram para fruírem o que tantos famosos nunca cheirarão – a vida descarnada. Uma liberdade em que a sombra desses seres é proporcional à intensidade do ardor no estômago e das surpresas a cada instante. Um descontrole ou mesmo uma rotina que franqueia toda uma gama de sentimentos julgados sonhos. Da mesma maneira, falando em casos ou causalidades cinematográficas próximas, não considero um Manuel Mozos ou um José Nascimento realizadores falhados. Como considero o padeiro da minha rua o mais prendado dos artistas. O que muitos tentaram e não conseguiram em incontáveis filmes, videoclipes ou híbridos, Mozos, Nascimento, o puto ignorado do curso de cinema que não lambe botas, aquele que bebeu um copo a mais e falhou, conseguem a cada frame, a cada entrevista não dada, a cada cocktail falhado - a candura, uma aurora, a impressão de verdade que jamais se compra ou suborna. Do loser ao vencedor a ambiguidade da importância. Do fundamental. Five Easy Pieces é a estrada, o percurso e o foco para o desengano. Tão, tão nítido. Ficam dois dos exemplos mais doridos de que me lembro:
1. A câmara fixa-se no rosto dele, escuta-se os preparativos dos dedos e das vacilantes pálpebras, a música entra. Um lamento de Chopin dá o mote e o ritmo a uma divagação nostálgica e funerária. Sai dali com um último olhar e desce até à tensão e coreografia dos dedos com as teclas. Detém-se um bocadinho, não muito, e avança para uma descrição do espaço que é simultaneamente a história do pianista e da sua tragédia ou salvação. A pauta, um repousado violino, outras mãos de uma mulher que nesse momento ele já possui, obviamente flores para uma coroa, um violino mais e o cortinado acastanhado em fundo para entrarmos nas famílias e genealogias. A sua, os seus, amados, perdidos, desprezados, desconhecidos, humilhados, a infância, o luto. E a outra família ainda, ali tão central como a sua, que o acompanhou igualmente do berço e lhe impôs um peso que ele não quis. Beethoven, Bach, o Chopin do negro, alguns mais. Texturas e rasuras a carvão, existências concluídas, suspensas, mascaradas, outras que ainda pulsam. Mas todos na mesma parede, como os altares dos mortos. E da aparente lisura voltámos para os relevos e já lágrimas da mesma mulher que vimos segundos atrás. Nesse hiato insignificante por entre eternidades, ela já é outra. Corte para ele, que parece descarregar as toneladas que ainda o faziam duvidar, mas agora, já mesmo nada o deterá. Para o bem e para o mal, princípio e fim. Aceitação e coragem, nascentes dessa circulação aglutinadora e espectral que assim materialmente e no espaço vazio da morte o cinema conseguiu urdir. Muito triste, muito contundente.
2. Mais um bocadinho para a frente, depois das fúrias e orgasmos gelados e antes da ponderação derradeira. Ele largará tudo de novo, fugirá, esconder-se-á, para arriscar tudo definitivamente ou na busca das felicidades iniciáticas antes das tempestades, não restam dúvidas. Ou então foi num instinto com causa. Sem prestar contas. É nessa gasolineira igualmente cálida e fria como o desamparo que ele entrega a sua identidade para ficar só consigo. Ao passar a carteira dos trocos à também lindíssima criatura composta por Karen Black, aposto que também passa o bilhete que o denúncia, a sua redutora construção que é mais a construção de outros. Um morto por um vivo é a troca inventada, a ver vamos e jamais saberemos. Essa passagem da carteira tem a força dos planos de pormenor cósmicos e silentes de Robert Bresson. Dupea não pestaneja, e vai à sorte que é a vida. No banco da frente de um hercúleo camião, ao lado do desconhecido condutor e desafiando o desconhecido destino, não haverá frio que o incomode, gelo que o paralise. Outro tipo de calor imaterial e invisível começa por ali a fervilhar. O resto é só dele e o filme acaba. Em toda a simplicidade, sem gritos nem retórica, todo o cinema que depois do clássico importa. Assim mesmo, perfeitamente clássico e intemporal. Com Jack Nicholson a preparar a rima, universal e não somente europeia, com o Antonioni de The Passenger. Rima ou chegada, conclusão, crepúsculo, embate, humana contradição. Nada mais certo no ar da errância.
(montagem a partir de fragmentos escritos no blog Raging-b)
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