por João Palhares
Vindo dos chamados de duros Clint Eastwood e Don Siegel, ditaria o bom senso ou a história oficial do cinema falar-se de relógios suíços e de cronómetros e de planos estudados e científicos, que serão sem dúvida as razões que tornam Escape from Alcatraz uma experiência alucinante e muitíssimo envolvente mas que talvez estejam longe de esclarecer totalmente o mistério deste filme sobre tantas prisões e sobre tantas liberdades.
Quando se vê o filme pela primeira vez é a destreza da exposição e da disposição das cenas e dos planos que nos apanha desprevenidos. Passa uma hora e a obsessão por cada acção dos prisioneiros prende-nos numa enorme rede de cumplicidade. As belas simetrias da narração e que vão da mais óbvia, o facto do filme começar com a entrada na prisão de Alcatraz e acabar com a saída, a primeira sob a água da chuva e a segunda sobre a água do mar; passando pela apresentação e pela despedida de Frank Morris e English, as personagens de Clint Eastwood e Paul Benjamin com ambos a chamarem-se de “boy” ou pelos encontros do mesmo Morris com o brutamontes Wolf, que entra na solitária na primeira metade do filme e sai na segunda. E ainda as mortes de ‘Doc’ e de Litmus em momentos chave do filme e também simetricamente dispostas.
Na segunda vez que se vê o filme repara-se numa flor que parece simbolizar a liberdade: um belo apontamento, pensamos nós, estes prisioneiros representam uma opressão mais profunda e que também nos diz respeito. Na figura do director prisional vemos a opressão e pensamos então nos horrores de Alcatraz: os suicídios, as mortes de presidiários pelas mãos de outros presidiários ou pelas mãos de guardas, as mortes de guardas, os castigos na solitária, os massacres de vários prisioneiros em fuga e a repressão constante que dá no desespero absoluto de certos prisioneiros (a auto-mutilação de ‘Doc’ é baseada na de Rufe Persful, nos anos 30). Ficamos do lado de Morris e de ‘Doc’ e de English, incondicionalmente, e começamos a reparar ainda em pequenas coisas mostradas com enorme sensibilidade: o rato pequeno de Litmus, a que ele dá de comer e que vai a todo o lado com ele, resgatado depois por Morris quando o dono morre; as visitas da mulher de Charley Butts e da filha de English, mais coisa de olhares e de gestos do que de conversas propriamente ditas (que, de resto, são escutadas pelos guardas da prisão); os quadros de ‘Doc’; a ajuda prestada por quem nem sequer pensa em fugir da ilha mas que, de certa maneira, foge com eles e associa a fuga a um ataque directo à prepotência diária de Alcatraz. E vemos a flor a flutuar nas ondas da manhã, com o director atónito e uma mensagem, no fim do filme, que nos diz que a prisão fechou pouco tempo depois. A misteriosa fuga destes três prisioneiros abalou as fundações dum sistema e Don Siegel, Clint Eastwood e Richard Tuggle perceberam isso muito bem. Bem como que quando assim é, não são só as instituições que vêem o seu funcionamento posto em causa, mas há algo que muda bem fundo nas almas e nos corações dos homens.
E à terceira, ouvimos que a flor é um crisântemo plantado há quinze anos por ‘Doc’ e por Litmus e que significa muito para eles. Logo a seguir, vemos o director a tentar destruí-lo e a provocar a morte do segundo. Mas até na aridez e no inferno de Alcatraz há algo que floresce, uma liberdade e tenacidade humanas inabaláveis que nem o director consegue perturbar: ‘Doc’ e Litmus saem de Alcatraz através do crisântemo e do rato, que vão com Morris. A pintura e o trabalho de ‘Doc’, outra tentativa de fuga, tornam-se indissociáveis da que levam a cabo os três “fugitivos de Alcatraz”, que fazem modelos das suas caras e da conduta de ar das suas celas e as pintam. Os quadros de ‘Doc’, particularmente o do próprio Director, incomodam-no porque se vê finalmente a si próprio e com as verdadeiras cores e não gosta, o retrato reaviva-lhe a consciência e não o suporta. Percebe também que dali, dessa demonstração de liberdade absoluta, até um motim ou uma fuga vai um pequeno passo e por isso a tenta destruir. E o espírito lutador e a moral certa de Siegel e Eastwood, tantas vezes chamados de fascistas por quem não sabe o que é o fascismo, vêm ao de cima, transformando o que pode parecer só um austero exercício de movimentos e de descrição precisa desses movimentos (à maneira de Fleischer, Henry Hathaway ou Robert Bresson, que fez esse Un condamné à mort s’est échappé ou Le vent souffle où il veut (1956) com que o filme de Siegel faz uma óptima parelha) num grito contra a brutalidade e a crueldade humanas. E ainda assim há imensa coisa por explicar e por perceber.
“O vento sopra para onde quer”...
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