quarta-feira, 23 de novembro de 2016

The Killing of a Chinese Bookie (1976) de John Cassavetes



por João Palhares

John Cassavetes é difícil de situar ou descrever, de enquadrar numa corrente ou num movimento. “Não papava grupos”, como diz muitas vezes o José Lopes, actor do Adeus Lisboa que vimos no início deste ano - antes de Stagecoach, se bem se lembram. Quando o achavam perto do cinema underground, fazia Too Late Blues, quando o achavam perto do cinema de Hollywood fazia Faces e baralhava as contas todas outra vez. Talvez se possa dizer, então, que foi sempre fiel à sua stock company, como John Ford antes dele e como Pedro Costa, uns anos depois. Perto da mulher, Gena Rowlands, de Seymour Cassel, Peter Falk, Val Avery, Elizabeth Deering, Fred Draper, John P. Finnegan e de Ben Gazzara, que interpreta Cosmo Vittelli no filme de hoje, The Killing of a Chinese Bookie, de Al Ruban (produtor, mas também actor, montador e director de fotografia), Bo Harwood (música, som), Sam Shaw (produtor, cenógrafo) ou de Phedon Papamichael (direcção artística), fazia filmes de que não se conseguia distanciar e, portanto, mergulhava totalmente nas cenas, nos locais e nos corpos que os percorriam, fazendo dos mais belos retratos do amor e da amizade dos anos setenta e oitenta. 

Juntava ainda a estes actores renegados selvagens como Timothy Carey e Lawrence Tierney (vindos das trincheiras da série B e dos biscates em produções maiores, sempre em conflitos e sempre com muitos problemas, onde trabalharam com André De Toth, William Wellman, Elia Kazan, Delmer Daves, Stanley Kubrick, Phil Karlson, Gordon Douglas, Robert Wise, Richard Fleischer ou Cecil B. DeMille), mulheres não menos selvagens como modelos e playmates, actrizes de filmes de Russ Meyer (Haji) e bailarinas de casas de striptease (Donna Gordon e Alice Friedland), e por isso a vida entrava nos seus filmes e por isso se justificavam os movimentos de câmara ansiosos, o grão da imagem e os sons não trabalhados, brutos e violentos. John Cassavetes atirava-se de cabeça para cada filme, não procurava efeitos nem associava correntes de pensamento contemporâneas à técnica dos seus filmes, não escrevia manuais de instruções para críticos e espectadores (como se faz muito, agora). Não, saía tudo dele, instintivamente, e para o bem e para o mal. Do coração e do fundo de si, fiel às famosas palavras de Samuel Fuller, ditas em Pierrot le Fou (1965) de Jean-Luc Godard: “o cinema é como um campo de batalha: Amor. Ódio. Acção. Violência. Morte. Numa palavra, emoção.” 

Donna Gordon falou em entrevista do seu encontro com Cassavetes para entrar em Bookie. Disse que "era uma bailarina num clube de strip em Hollywood chamado “The Classic Cat” e uma amiga minha – Alice Fredlund – também na indústria (e que acabou por interpretar “Sherry” no filme) estava a trabalhar num clube mesmo no fundo da rua chamado “The Body Shop”. No meu dia de folga a Alice telefonou e disse que um realizador qualquer chamado John Cassavetes vinha ao “The Body Shop” procurar raparigas para entrar num filme novo para que ele estava a escolher actores. Sem reconhecer o nome dele nem acreditar nela, já que me tinha pregado partidas no passado, coisas como: o agente do Dustin Hoffman me querer ver, etc, pensei “que se foda”. 

“Quando cheguei ela levou-me com ela. Apresentei-me a alguns homens numa mesa, e pensei que se fosse uma partida pelo menos ia ter uma bebida ou duas de graça. Estava o John Cassavetes e acho que o actor Seymour Cassel também. Quando o John me deu um guardanapo com o número de telemóvel dele, e me disse para lhe telefonar por causa do filme, eu só pensei: “Está bem, está”. Mas peguei nele, enfiei-o na minha mala, disse obrigado, e pus-me a caminho. 

“Uns dias depois estava em Las Vegas numa festa com algumas celebridades. Alguém me perguntou se tinha amigas bonitas que se quisessem juntar à festa, portanto telefonei à Alice em L.A. Ela disse-me que não podia vir porque se estava a preparar para entrar no filme do John Cassavetes e que se eu não dissesse nada iam escolher outra pessoa. Com relutância decidi arriscar. Voltei para L.A e pela primeira vez a Alice estava a dizer a verdade.” 

Sobre Cassavetes, disse: “Se eu na altura soubesse tanto sobre ele como sei agora, tenho a certeza que estaria muito mais nervosa ou com “pânico do palco”. Eu não sabia que ele era um realizador independente inovador e não fazia ideia que era actor, sequer. Não tinha visto Rosemary’s Baby ou The Dirty Dozen nem nenhum dos outros filmes dele (que me lembrasse, pelo menos), portanto para mim ele era só um realizador... mas diferente da maioria dos tipos de Hollywood, não era “dress for success”. 

“Quando vi o John pela primeira vez parecia que tinha acordado num banco de jardim. Até lhe disse que precisava de se barbear e comprar roupa nova. E acho que ele gostava da minha honestidade ingénua. Costumo falar das coisas como elas são. E se vir Bookie, vai ver que a minha personagem é muito brusca e um bocado “cabra”. Ao princípio não gostava desse aspecto da “Margo”, mas agora percebo que a faz destacar-se dos outros.” 

Sobre os ensaios antes da rodagem, disse: “Estávamos todos a ler do guião, a passar pelas nossas falas, e acho que para o John parecia muito construído. Chegou ao pé de mim, pegou no meu guião, atirou-o para o fundo da sala, agarrou-me pelos ombros e gritou: “Quero que seja verdadeiro... quero a Donna verdadeira!

“Apesar de intenso, o John era muito doce, e compreendíamo-nos um ao outro. Ele sabia que tinha passado por muito na minha vida; tinha muita dor e era dura como uma pedra por causa disso. E acho que ele percebeu que a minha vida intensa se ia canalizar na personagem.” 

Muitas citações e muitas aspas mas que, pelo menos, nos ensinam que o cinema não tem que ser vida de estrela nem de connects ao mais alto nível mas pode ser uma "arte do encontro", como dizia o outro. Por aí, pela madrugada e por Braga, porque não?

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