quarta-feira, 9 de novembro de 2016

The New Centurions (1972) de Richard Fleischer


por José Oliveira

The New Centurions é um dos mais belos e comoventes filmes alguma vez feitos sobre a amizade. Logo, uma dolorosíssima visão sobre os trabalhos e a fatalidade da solidão. Se acompanhamos grupos de polícias na cidade dos anjos que escalda, metodicamente e detalhadamente, o que vai sendo cada vez mais apurado e vincado é o tempo a actuar. Amizade, solidão, e logo o medo... porque as coisas passam, envelhecem, desaparecem, tanto a paisagem como as pessoas. E chega a morte, que é a do inesperado final de Roy Fehler, e perfeitamente esperado pois tanto ele como o seu mestre - ou o seu pai, irmão, esse anacrónico e artista Kilvinski que soube desde sempre que a melhor das leis é a do interior - acreditaram demais e amaram demais o que porventura já assim não pode ser sentido pois demasiado já aconteceu por estas terras desde tempos demasiado remotos que vão ser evocados aquando das mais negras dúvidas. Amaram demais e viciaram-se demais no que lhes tocou em sorte, na missão sanguínea, e as duas tornaram-se indestrinçáveis. Quando julgaram que poderiam começar a afastar-se e a viver os contos de fadas que sempre puseram em perspectiva, tombaram. O mais triste dos contos, com a moral que Kilvinski não se lembra na hora do seu apagamento - no mais secreto e justo dos planos sacrificiais - e o mais alegre, num mundo onde em tão violentas crostas e cheiros todos parecem ser igualmente bons, muitas das vezes anjos - ou todos terem as suas razões - todos menos esse mercenário que explora os trabalhadores mexicanos e que arranca do bom Kilvinski a mais enraivecida das justiças. Justiça, que será outra dos centros e demandas, precisamente, sacrificiais. 

Faz sentido que a dupla Irwin Winkler e Robert Chartoff tenha pegado no projecto e o tenha acarinhado tanto como acarinharia os contos Caprianos da saga Rocky ou outras produções com Robert De Niro em deslize, parecendo ser coisas destas em ligação a Paraísos Perdidos o que realmente lhes interessa. Como as afeições alvas de Frank Borzage ou os miminhos das irmãs Gish nos Griffiths, como Pat Garrett & Billy the Kid, Scarecrow ou o Ed Wood de Tim Burton para todo esse amador genial, Richard Fleischer cria, na aparência do género policial cinematográfico com que Kilvinski goza a certa altura para efeitos de realismo e verdade, um grande ciclo que vai do nascimento e aprimoramento ao fim, deixando entrever nas bordas os eternos-retornos e mais uma vez os princípios dos fins. É assim que quando um verde agente diz aos experientes que apenas quer fazer o bem, só obtém destes silêncio, e medo, e muita estupefacção de quem reconhece tais traços e crenças e possivelmente já destino. Numa cena que corta e monta para outros trabalhos, os do casal com Roy que ainda não sabe controlar esse tipo de amor. 

Como Kilvinski, homens sempre à deriva num mar turvo que lhes promete a terra firme, mar de onde não poderão sair pois só nele se espraiam realmente. Um veterano que recolhe as prostitutas da rua e as protege, oferecendo-lhes whisky e leite e tratando-as como rainhas, que se delicia no que elas têm de genuíno e de júbilo em comparação com as aparências do bem e do normal, ficando muitas saudades de ambas as partes, tem obrigatoriamente, na podridão circundante que teima em velar o brilho do mundo, de ser castrado. Que o seu discípulo lhe siga os passos mesmo que o contradiga perto da hora negra por ter descoberto outro tipo de ilhas, são as linhas e os caminhos da tragédia que este filme é. 

Tragédia que Fleischer tece sem exaltações mas como sempre muito naturalmente, muito humanamente. Não imita nada, não copia ninguém, não vai buscar a cinematografias alheias ou a fatos à medida de outras artes ou sociologias, mas observa, toma o pulso, segue, tenta perceber ou aceita o que assim tem de ser. Kilvinski nunca pôde dizer ao seu filho que parasse aquela rotina estupefaciente e voltasse para o lar, mesmo quando esse tocou nas matérias do outro mundo; assim como voltou ao antigo local de trabalho depois do retiro oficial, à sua única família, sem nada para fazer como uma criança que exulta e suplica por brincar com os outros garotos. Essa suspensão, esse calamento. E é este o movimento capital destes Centuriões modernos e de todos os que acreditam numa coisa em algum tempo e lugar, no que quer que seja, na sua arte, até ao fundo, sem freios - a solidão, a saudade que afinal é universal. Faltando o tudo a que se agarrou, não se tendo as bóias ou as margens alternativas, morre-se facilmente.  

É assim, sem efeitos ou enfeites. Secamente. Ao osso. O olhar vazio, a tal moral. 

(texto inédito e que será publicado na próxima edição da Foco – Revista de Cinema)



por João Palhares

Eis-nos chegados e atracados a Richard Fleischer, poeta silencioso das fileiras da RKO, maestro imperturbável mas discreto do grande espectáculo a partir das 20,000 Leagues Under the Sea (1954). Só que rotulá-lo e decifrá-lo, se não é impossível (e bem me quer parecer que sim), é muito difícil. Resta olhar para os seus filmes com vontade de os ver, e arriscar atirar frases e parágrafos na esperança (ou ilusão) de se chegar a algum lado. É o que aqui se vai tentar fazer. 

“Even the romans had centurions to keep the peace. And they were unsupported, unhonored, disliked, just like us. But they held the line, for a while… until Rome was finally overrun by barbarians.” Esta frase aparece a meio do grandioso (do belíssimo, do estratosférico, do…) The New Centurions (1972), dando algumas luzes sobre o que por lá se passa, quando Kilvinski (o personagem de George C. Scott), poucos meses depois da reforma, regressa de uma terrivelmente elíptica estadia em casa da filha e da neta e passa um bocado tão preciso com o antigo colega e amigo, Roy Fehler (o fabuloso Stacy Keach), depois de tantas rondas, turnos e patrulhas partilhadas nas ruas de Los Angeles. Só eles, que viram os olhares estilhaçados das vítimas, horrores domésticos, pesadelos durante a noite, acordados, ora sóbrios ora bêbados, é que percebem que se podem mudar todas as leis para melhorar as percentagens e sondagens do crime – que servirão para ganhar eleições e a adulação barata de certo povo e de certas elites -, “but they can’t get rid of evil”. Eles nunca ouviram falar da “Kilvinski’s law”, que pode também levar o nome de “consciência” e implica saber chegar a um quarteirão com ar de favela e perceber que às vezes é quem é respeitável que tem a culpa no cartório. Como saber que não é preciso levar ninguém para a esquadra certa noite, bastando pagar uma garrafa de whisky e leite às putas que enchem a carrinha da polícia e pedem – só uma o pede, de forma belíssima – palmadas no cu para para ela subirem, contando histórias de banhos de leite macabros em Beverly Hills, decapitações de galinhas feitas só pelo receio de não agradar ao cliente… Acabar a noite a tomar o pequeno-almoço num diner qualquer, sabendo que foram o álcool e os cigarros e as palmadas e os favores oferecidos a esta gente que tornaram as ruas seguras por mais um dia… Sem quotas de encarceramentos, sem vistos nas folhas de apreensão, sem adições no registo criminal. Como manda aquele bichinho na cabeça que tanto importuna ao cair do dia, no breu das várias noites possíveis (das noites do caçador às noites na alma) a perguntar que parte fizemos nós nesta coisa redonda a que chamamos mundo. 

É o mundo de tanta película que rodou, projectou e disparou, serena à volta das mesmas paisagens. De Electra Glide in Blue (1973), de Fort Apache, the Bronx (1981), de Colors (1988) e do tão próximo de nós – só 9 anos nos separam dele -, We Own the Night (2007). As mesmas dúvidas, as mesmas tristezas, os mesmos azares, a mesma solidão, as mesmas viagens ao fundo da alma, as confissões e monólogos regados a whisky que antes nem às paredes se confessavam. Tudo para “hold the line” e “in the line of duty”. 

E entre as tantas prodigiosas sequências deste prodigioso filme, falo agora só de uma, deixando de fora a do hospital, quando Fehler é atingido no estômago e dispara as suas confissões ao amigo Kilvinski, que fora até ali pai e é agora irmão; deixando de fora a do tiro involuntário do polícia ainda verde que se desfaz em pranto à frente do decano parceiro de patrulha que lhe diz que teria feito o mesmo na mesma situação; deixando de fora a da perseguição nos túneis que apagam toda a luz e toda a coragem; e que dizer dos encontros lindíssimos de Fehler com a enfermeira e que abrem caminho para o terrível “Can’t happen now, I was beginning to know…” e para o “Santa Maria, madre de Dios, ruega señora, ruega por nosotros. Ahora y en la hora de la nuestra muerte. Amén” do Sergio de Erik Estrada, que é protagonista de outras tantas prodigiosas sequências? Falo então do plano extraordinário sobre George C. Scott que, pela sua discrição, nem se julga à primeira vista de tanta duração. Conta ele a história de um homem que telefona todos os dias à esquadra de polícia porque está alguém no alpendre. Conta que chegava lá e não via ninguém, mas confortava o homem fingindo que tinha expulsado esse alguém, até ao homem telefonar no dia seguinte e Scott fazer o mesmo que tinha feito no dia anterior. Que será feito desse homem, pergunta ele a Fehler. E a câmara aproxima-se, aproxima-se e sondam-nos os abutres fantasmas dos “dont’s” e das leis da conversa no bar de strip e da filha e da neta de Kilvinski e do polícia reformado que também tem que visitar a esquadra e arranjar um emprego para não ver ninguém no alpendre de sua casa. Volta-se aos grandes monólogos de grandes filmes, num só plano na cara de grandes actores que contam histórias de fins do mundo e nos contaminam só com o seu olhar e com a sua voz… Presos nos olhares e nas vozes, não reparamos em absoluto se há cortes ou se se passa o quê ou o que quer que seja, a não ser aquele pesar na voz e aquele arrependimento de se ter testemunhado novos tempos a destronar outros tempos, novos tempos se calhar nem piores nem melhores, mas em que não há lugar… 

E, “well, here’s to the New Centurions. Let’s hope they do a better job than the old ones.” 

(texto publicado no site À Pala de Walsh, a 17 de Dezembro de 2013)

Sem comentários:

Enviar um comentário