sábado, 19 de novembro de 2016

35ª sessão: dia 22 de Novembro (Terça-Feira), às 21h30


Sobre John Cassavetes se pode dizer que perseguiu um único tema: o amor. Por ele movido e trucidado a sua câmara tanto tremeu, torcendo-se e contorcendo-se, caindo e levantando-se, perdendo-se e encontrando-se nesse violento embate com a morte, a raiva, o carinho, confiança e desconfiança, todos os temas que gravitam no coração do homem. Máquina de filmar conectada literalmente à sua carne e ao seu sangue, aos seus nervos e ao seu espírito, olhando todos e mais alguns abismos. Nada para ele importava mais do que os seus actores, e obcecado com Gena Rowlands, com Ben Gazarra ou com Peter Falk, tentou entender e dar razão a milhões de outros seres frágeis e únicos. Tão contraditório como certo. 

Sobre The Killing of a Chinese Bookie, a nossa próxima sessão, disse: «Este é um dos filmes que mais me interessou. Parte do desafio foi imaginar um mundo contido em si mesmo, diferente daquele em que vivo, mudar-me para ele e nele viver. O Cosmo Vitelli é um homem que diz querer viver com estilo e confortavelmente. Mas para Cosmo, o conforto significa viver no fio da navalha. Ele dirigiu um clube que não é dele durante sete anos. Mas o reinado dele é uma farsa sustentada apenas por encontros mensais com um agiota. Este filme diz-me algo. Podemos vender tudo sem pensar duas vezes... Até as nossas vidas». 

A anteceder o filme teremos um vídeo onde o crítico e historiador Italiano Adriano Aprà (Adriano “Vitelli” Aprà para os amigos) nos falará sobre o grande cineasta Americano.

Sérgio Alpendre, que nos apresentou Cleopatra e Cecil B. DeMille no início do ano, escreveu sobre a obra de Cassavetes a propósito duma mostra no Cinesesc, dizendo que o realizador é "um mestre da subtileza. Os seus filmes, especialmente os mais pessoais - além dos que o Cinesesc exibe, pode-se incluir nessa turma Maridos (Husbands, 1970), Tempo de Amar (Minnie & Moskowitz, 1971) e Amantes (Love Streams, 1984) – são cheios de pequenas nuances reveladoras dos personagens, ou, antes, das pessoas. Essas pessoas são retratadas, geralmente, em situações limite, que fazem com que elas estejam sempre à flor da pele, e sejam tão indefiníveis quanto as pessoas que vemos no dia-a-dia, que fazem parte das nossas vidas. Essa proximidade com pessoas que conhecemos, ou com as quais convivemos, em maior ou menor grau, já garante uma empatia imediata com os seus filmes. Mesmo que de início eles se mostrem um tanto cruéis e misóginos, caso de Faces (1968) e Maridos, principalmente; ou inclinados demais por um sadismo pouco explicado, Uma Mulher Sob Influência, Noite de Estreia; ou ainda internos demais, completamente compreendidos apenas por iniciados em artes, Noite de Estreia e A Morte de um Apostador Chinês; ou demonstrem uma soberba irritante, Gloria, de 1980, no qual a personagem-título desdenha, de um elevador do prédio em que mora, o menino pobre, no fim revelam muita riqueza de observação. Revelam também uma disposição generosa para entender as mais pequenas fagulhas de revolta ou de ódio, as  demonstrações de humanidade mais irrisórias, mas não uma humanidade de manual, com gestos enobrecedores e compreensão assombrosa, mas uma humanidade calcada na vivência, no sofrimento e no gozo diários. É gente de carne e osso que aparece diante da câmera de Cassavetes. E é por isso que nos sentimos tão bem ao ver os seus filmes."

Continua, dizendo que "Maridos sedimentou praticamente o esquema de realização de Cassavetes, com muita liberdade ao actor, e duas ou três câmaras para captar todos os movimentos. Depois de filmar muitas horas de material, Cassavetes monta o filme respeitando o tempo dos actores, e das emoções que eles fazem aflorar na tela. É um tipo de montagem pouco convencional, com cortes bruscos, ausência completa de didáctica espacial (sem que a nossa noção do espaço seja prejudicada), uma aceleração constante dos acontecimentos contrastando com o tempo cadenciado no interior dos planos. Graças à sua maneira de montar os filmes, e de pensar a mise en scène como algo revelador dos seus personagens, além da sua tendência em extrair dos movimentos de câmara e dos tempos de corte verdadeiros retratos de almas, Cassavetes foi reconhecido como um inventor de formas. Graças a essa invenção constante de formas, os personagens de Cassavetes apresentam-se com muitas facetas, como num retrato cubista. O aspecto formal faz, assim, uma ligação perfeita com o conteúdo dos seus filmes."

Sobre o filme da próxima Terça-Feira, escreve que "A Morte de um Apostador Chinês (The Killing of a Chinese Bookie, 1976) e Noite de Estreia (Opening Night, 1978) marcam o regresso de um amigo querido ao cinema de Cassavetes, Ben Gazarra, um dos protagonistas de Maridos. Ele interpreta o protagonista de A Morte, um dono de clube nocturno que para saldar dívidas tem que matar o personagem do título. É um filme ensaísta, que versa sobre a passagem do tempo, as decisões que contrastam com o desejo do protagonista e o excitante e decadente mundo nocturno, com as suas mulheres performativas e os seus homens sedentos de carinho, afeição e sexo."

Finalmente, Jim Jarmusch escreveu uma carta aberta a John Cassavetes, em que disse e confessou que "Fico com uma sensação especial quando estou prestes a ver um dos seus filmes–uma antecipação. Não importa se vi o filme antes ou não (por este momento acho que os vi todos pelo menos várias vezes) fico com essa sensação na mesma. Estou à espera de qualquer coisa que pareço precisar, uma espécie de iluminação cinematográfica. Como fã de cinema ou como cineasta (realmente, já não há uma linha divisória clara para mim) estou a antecipar um golpe de inspiração. Quero iluminação formal. Preciso que me sejam reveladas as consequências secretas de um jump-cut. Quero saber como é que a crueza dos ângulos de câmara ou o grão do material fílmico figuram na equação emocional. Quero aprender sobre interpretação com os desempenhos dos actores, sobre atmosfera com a luz e os locais. Estou pronto, totalmente preparado para absorver a “verdade a vinte-e-quatro-frames-por-segundo.”

"Mas o que acontece é o seguinte: logo que o filme começa, me apresenta o seu mundo, eu estou perdido. A expectativa dessa iluminação específica evapora. Deixa-me lá no escuro, sozinho. Agora habitam seres humanos no mundo dentro do ecrã. Também parecem perdidos, sozinhos. Eu olho para eles. Observo cada detalhe dos seus movimentos, das suas expressões, das suas reacções. Ouço com atenção o que cada um está a dizer, as bordas desgastadas do tom de voz de uma pessoa, o mal escondido no ritmo do discurso de outra. Já não estou a pensar em interpretação. Estou abstraído do “diálogo.” Esqueci-me da câmara.

"A iluminação que antecipei de si está a see substituída por outra. Esta não convida a análise ou a dissecação, só a observação e a intuição. Em vez de ideias sobre, digamos, a construcção de uma cena, começo a ficar iluminado em relação às nuances ardilosas da natureza humana.

"Os seus filmes são sobre amor, sobre confiança e desconfiança, sobre isolamento, alegria, tristeza, êxtase e estupidez. São sobre inquietação, embriaguez, resiliência e luxúria, sobre humor, teimosia, falhas de comunicação e medo. Mas, sobretudo, são sobre amor e levam-nos para um lugar muito mais profundo do que qualquer estudo sobre “forma narrativa.” Sim, é um grande cineasta, um dos meus favoritos. Mas o que os seus filmes esclarecem de forma mais pungente é que a celulóide é uma coisa e que a beleza, a estranheza e a complexidade da experiência humana é outra.

"John Cassavetes, tiro-lhe o meu chapéu. Estou com ele por cima do meu coração."

Até Terça!

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