por João Palhares
“To be invisible
Will be my claim to fame,
A man with no name.
That way, I won't have to feel the pain.”
Curtis Mayfield, em To Be Invisible
“Ce grand malheur, de ne pouvoir être seul.”
Jean de La Bruyère - epígrafe de The Man of the Crowd de Edgar Allan Poe
Vimos do negrume de The New Centurions (exibido por nós a semana passada) para o negrume do filme de hoje: The Conversation. Já estamos apresentados, seguramente, ao mundo destroçado dos homens que tentam fazer a coisa certa num meio sufocante, esmagador e que desafia qualquer explicação e qualquer remédio. E embora não precisemos de filmes para conhecer esse meio e esse mundo (para isso basta olhar à nossa volta), já vimos o xerife Calder abandonar a cidade de Bubber Reeves desfigurado por dentro e por fora em The Chase, já vimos o asfalto tornado morada eterna quando recebeu o corpo do agente Wintergreen em Electra Glide in Blue, já vimos o crime e a cidade a corroer os espíritos de Kilvinski e de Roy em The New Centurions e veremos hoje a estranha aventura de Harry Caul, personagem interpretado por Gene Hackman e atormentado por questões relacionadas com a sua vida privada e com a convivência normal com os outros mas que, muito ironicamente, tem como trabalho invadir a privacidade das pessoas.
É difícil saber com toda a certeza se o mundo está tão diferente do que era e do que foi, se é tão mais difícil perceber e dar um sentido, nos dias que correm, às coisas que se passam à nossa volta. Pensando que se disse que os filmes, hoje em dia, têm que ser muito mais longos para contarem o mesmo que contava um filme muito curto e habilmente condensado de Edgar G. Ulmer, Jack Arnold ou Jacques Tourneur dos anos 40 e 50 (foi Jacques Rivette quem o disse), ou que é muito mais difícil decidir e saber o que é bom e o que é mau pela quantidade de poeira que nos deitam para os olhos todos os dias (foi o fotógrafo Paulo Nozolino quem o disse), que atrás de nós estão anos de história e aumenta a cada dia que passa a nossa herança cultural, os nossos traumas civilizacionais, e se amontoam dentro de nós novos conhecimentos, informações e saber. Tal como o universo, que se expande e parece ocultar proporcionalmente os seus mistérios, também a alma e a mente humanas parecem fazer percurso semelhante, mas para o interior. As cidades crescem e o homem refugia-se em si mesmo e remete-se à solidão. Voltamos aos Cadernos do Subterrâneo de Dostoievski, voltamos a Bartleby e às resoluções vazias no prédio em ruínas... Se prestarmos atenção talvez lá encontremos Harry Caul, o homem que quer estar só sem estar mesmo só.
Francis Ford Coppola falou de Franz Kafka, Hermann Hesse e Michelangelo Antonioni como bases para o seu The Conversation e o impermeável transparente de Harry, os passeios dele entre a multidão, a bela melodia ao piano de David Shire e a repetição obsessiva do plano do beijo de Cindy Williams a Frederic Forrest (que lá para o fim do filme já toma contornos abstractos e metafísicos) parecem confirmar estas influências. Confirmam, também, poder falar-se nestas questões de mundos em mudança, de homens a reagir à dispersão da informação e do conhecimento, especializando-se nos seus campos respectivos. Presos ao trabalho e imersos nos seus processos como o David Hemmings* de Blow Up com as suas fotografias e o próprio Harry com as suas fitas e os seus microfones, vêem e ouvem a mesma coisa horas e dias a fio até começarem a ver e a ouvir coisas diferentes, desafiando a sua própria sanidade. O filme de Coppola mostra isso com uma nuance genial na frase que a personagem de Gene Hackman encontra escondida na imensa paisagem sonora que capta no início do filme - a “conversa” do título original. Frederic Forrest diz a Cindy Williams que “he’d kill us if he got the chance” e as ramificações e as consequências possíveis dessa frase são exploradas ao limite ao longo do filme.
Claro que tudo isto se enquadra numa trama policial perfeitamente lógica, que Harry Caul é alguém que se tornou assim por se apegar demais a pessoas que vigiou uma vez em Nova Iorque, com resultados traumáticos. Volta a fazê-lo com estes jovens de quem forma uma ideia demasiado construída e que é verdade apenas na sua cabeça, porque não se conhece ninguém ouvindo meia dúzia de palavras trocadas numa praça cheia de gente. Quando descobre a verdade, é tarde demais. Pela repetição constante das frases e das imagens dessa conversa na praça podemos até assumir que ele próprio se projecta no jovem interpretado por Frederic Forrest, querendo amar e cuidar da mulher interpretada por Cindy Williams, como vemos no sonho dele e na reprodução integral da conversa quando acaba a festa e ele expulsa toda a gente do seu armazém menos a assistente do seu rival, em quem vê um duplo da mulher da conversa.
No final, no apartamento em ruínas que parece emular o de Bartleby, consuma-se a loucura de Caul, orgulhoso demais para se deixar vencer no seu terreno e para sempre preso nos interstícios mais ínfimos e insignificantes dessa conversa. No último plano repetido do beijo dos jovens assassinados tornados assassinos percebemos mesmo que há verdades que não se deixam revelar a si mesmas. E pensamos em Edgar Allan Poe, quando inaugura o seu The Man of the Crowd com este parágrafo desesperado:
“It was well said of a certain German book that "er lasst sich nicht lesen" --it does not permit itself to be read. There are some secrets which do not permit themselves to be told. Men die nightly in their beds, wringing the hands of ghostly confessors, and looking them piteously in the eyes --die with despair of heart and convulsion of throat, on account of the hideousness of mysteries which will not suffer themselves to be revealed. Now and then, alas, the conscience of man takes up a burthen so heavy in horror that it can be thrown down only into the grave. And thus the essence of all crime is undivulged.”
Não andamos longe do “The horror! The horror!” de Conrad.
* Hemmings aparece também em Profondo Rosso de Dario Argento que tem muitos pontos em comum com os filmes de Antonioni e Coppola bem como com o Blow Out de Brian De Palma.
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