terça-feira, 24 de janeiro de 2017

Cracking Up (1983) de Jerry Lewis



por João Palhares

Jerry Lewis nasceu Joseph Levitch e entrou muito cedo para o mundo do espectáculo, em digressão com os pais (como Buster Keaton, como os irmãos Marx, como a Elaine May de A New Leaf), Daniel e Rachel Levitch. Abandonou a escola para se fazer à estrada e tentar a sorte sozinho, actuando aqui e ali, com muitos altos e baixos, até conhecer Dean Martin aos dezanove anos, e juntos fazerem parelha em clubes nocturnos e em pouco tempo invadirem a rádio e a televisão, na mítica série The Colgate Comedy Hour, difundida de 1950 a 1955. A anarquia reinava nesses números tantas vezes improvisados, em que cantor (Martin) e comediante (Lewis) se completavam e articulavam plenamente, exalando energia e encanto, em interpretações que partiam da harmonia para acabar no caos absoluto, com tonalidade e dissonância a rodos, deixando quase a rebolar no chão quem os visse ao vivo (há bastantes histórias e testemunhos). O sucesso seguia-os para onde quer que fossem e no início dos anos 50 eram as maiores estrelas do país. Entraram juntos em quase vinte filmes até se separarem misteriosamente e ainda no auge do seu sucesso, no que foi uma separação traumática para Lewis, o mais novo dos dois, e que via em Martin uma figura paternal. 

Foi ainda com Martin que Lewis conheceu Frank Tashlin, outro grande mentor na sua vida (depois do pai e de Dean), que realizou para eles Artists and Models e Hollywood or Bust, talvez os melhores filmes da dupla. Com Tashlin e sem Martin, Lewis faria ainda Rock-A- Bye Baby, The Geisha Boy, Cinderfella, It's Only Money, Who's Minding the Store? e The Disorderly Orderly. Durante estas rodagens, Lewis ia passando tempo com técnicos e pessoal dos estúdios movido apenas pela curiosidade e fazendo mil perguntas sobre processos e materiais, aprendendo tudo o que podia sobre a realização de um filme. E então, por alturas de Cinderfella, que a Paramount queria lançar no Verão e o actor no Natal, Lewis desencanta um guião em duas semanas, entre muitos espectáculos e compromissos e depois de um ataque cardíaco durante a rodagem do filme de Tashlin. Mostrou-o a Billy Wilder e convidou-o para realizar o filme, mas o austríaco disse-lhe que se ele queria que as coisas fossem a seu gosto e sem concessões o melhor era ser ele a realizá-lo, "It's your baby". Lewis não fez por menos e além de o realizar, escrever e interpretar, também o produziu (o trailer do filme brincava com isto, mostrando Lewis nos quatro papéis). Ia-o montando nos camarins e nos bastidores dos seus espectáculos, depois de uma rodagem-relâmpago. The Bellboy foi então o filme de Verão da Paramount e o primeiro de Lewis como realizador. 

E aí começaram as experiências visuais e sonoras de Lewis, numa sucessão contínua de gags colados por uma trama mínima - Jerry à solta num hotel. Prestando homenagem aos seus heróis do mudo, o realizador resgatava a arte perdida da pantomima inserindo-se na grande tradição da comédia americana, de Mack Sennett a Charles Chaplin, passando por Stan Laurel e Buster Keaton. Fazia avançar essa arte enquanto levava a cabo verdadeiras revoluções técnicas no seio da indústria, como o video assist, que o permitia ver o que fazia à frente das câmaras, atrás das câmaras, depois de cada take. Tornou-se rotina no mundo do cinema e hoje não há quem não use esse sistema. Em The Ladies Man, o seu segundo filme, construiu um enorme cenário onde se lançou a si próprio e a dezenas de mulheres numa aventura ainda mais abstracta, mas assente em coreografias bem concretas. A cena da primeira manhã nesse grande dormitório é reveladora do trabalho e dos processos complexos de Lewis, que desta vez resolveu levar a cabo uma revolução diferente (e que não pegou): em vez de usar as perches do estúdio (cabos de plástico com microfones ligados usados em todas as rodagens para gravar o som) instalou um sistema de captação sonora nas próprias paredes do cenário. Trabalhador e pensador exímio, com The Errand Boy deu outro passo em frente e iam compensando e transparecendo as horas de ensaios necessárias para apurar os mais pequenos movimentos, trabalhados de forma a parecerem improvisados, naturais.

Mas os temas existem: como singrar e viver neste mundo quando se pensa que não se tem lugar? A vontade de ser outra pessoa expressa nas deambulações solitárias das personagens desajustadas e sonhadoras de Jerry Lewis e personificada no duplo mulherengo e egomaníaco de Julius Kelp em The Nutty Professor, Buddy Love. Explorando o mito do livro de Robert Louis Stevenson (Strange Case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde), Lewis encontrou o dínamo de toda a sua obra, que a partir de The Family Jewels já se podia lançar sem contradições nem receios para o terreno da abstracção pura (e aqui temos que nos repetir: foi o que fez Chaplin, foi o que fez Keaton, foi o que fez Jacques Tati...). Não é aventura que se possa empreender sem ser nos termos dos próprios artistas e por isso o reinado de Lewis na Paramount terminou no final dos anos sessenta (foi o que aconteceu a Chaplin nos anos cinquenta, foi o que aconteceu a Keaton nos anos trinta, foi o que aconteceu a Tati nos anos setenta...). Mas é aqui que entra Cracking Up. Ou Smorgasbord, milagrosa palavra sueca que quer dizer "variedade". Ou "mistela". 

Depois de se multiplicar e desconstruir em The Family Jewels, de dizimar a psiquiatria e a sua própria imagem em Three on a Couch, de satirizar todas as narrativas e tramas a três actos deste mundo em The Big Mouth, de desmentir a história universal em Which Way to the Front? e de testar os limites da sua bolsa até à falência em Hardly Working, Lewis realiza a sua última longa metragem, Cracking Up. Os anos setenta e oitenta foram os mais difíceis e os mais dramáticos da sua vida. Depois de uma queda que quase o deixou paralisado, viciou-se em analgésicos, tomando-os compulsivamente. Rodou um filme de temática difícil, investindo imenso de si, do fundo da alma, e não o conseguiu estrear pelas mais diversas razões. Está fechado a sete chaves e envolto em mistério: chama-se The Day the Clown Cried. Teve outro ataque cardíaco no início dos anos oitenta com que conseguiu gozar no Tonight Show de Johnny Carson: "quádruplo bypass soa melhor, mas ainda é preciso que o black & decker nos abra. Ahhhhh... Pois é, e depois a trinta centímetros com os retractores, eles entram e tiram a artéria da nossa perna e juntam-na ao coração... Aiaiaiaiaiaiaiaiaiaiaiiaia!" 

Cracking Up é a ressaca e a cura pela comédia de tudo isto: de Danny Lewis ("I wish I was like my father", como diz Warren ao seu psiquiatra) aos retractores e analgésicos (a operação ao guru de ioga). Uma travessia entre continentes e entre séculos cujo sentido estará nessa palavra sueca que é o pretexto para Lewis se atirar e confessar por inteiro. E o trabalho, se já não é tão ágil (não podia ser), continua tão pensado e eficaz como antes. E documenta-se o cansaço (os papéis de rebuçados dentro de papéis de rebuçados, a empregada que repete os pratos e os molhos, as modalidades de pagamento e as entradas, as saladas, os cafés, as sobremesas...) e a desilusão (o filme será irmão do King of Comedy de Scorsese), a comédia torna-se mais corrosiva (as cenas das tentativas de suicídio, obviamente, a cura do vício do tabaco a murros) e explosiva (avalanches, carros e prédios pelos ares). E deixa de haver encanto na falta de jeito e nos desajustes, ampliados a proporções tais que se torna questão de vida ou de morte. Em tempos de obsessão pelo capital e pela proficuidade não convém fugir da norma, a soma deixa de dar certo. E Lewis filma Cracking Up e reage a isto. E basta ouvi-lo hoje, em conferências ou entrevistas. Continua um revolucionário.

Jerry, tu não és louco.

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