Almirante Reis, Lisboa. Nepaleses. Indianos. Índios. Chineses. Brancos. Negros. Prostitutas. Travestis. Chulos. Reformados. Cowboys. Idosos e idosas. Pares de namorados. Bebés. Tascas para o bagaço. Kebabs a 1 euro. Tocas indefinidas. Macaenses. A nova Portugália. Import-Export. Corcundas. Gigantes. Caga-tacos. Deformações. Desempregados. Inúteis. Génios. Engravatados. As pessoas mais bonitas do mundo. Bicharia medonha. Pombas. Dejectos. Animais de estimação. Meninas com o arco-íris no olhar. Desgraçados. O próximo prémio Nobel. Violência e Verdade. Acção. Pulsão de vida e pulsão de morte. Em Braga, onde hoje veremos o filme que Samuel Fuller teve logicamente de fazer depois de ter ido a várias guerras mundiais, ao Oeste dos westerns, à sujidade e às cruzadas jornalísticas e a todos os tipos de guerras travestidas, teremos de ir a um lugar como a roulotte do Zé das Bifanas (nome oficial: bar rolante arco-íris), no complexo desportivo da rodovia, paralelo à Avenida João Paulo II, para ficarmos imersos no caldeirão humano da diversidade e contradição, onde cada um é como cada qual e pode ser comido pelo meio.
«Eu acredito mesmo que é o mundo que faz de ti o que tu és. Não és tu que fazes o mundo», disse Sam Fuller. É preciso alguém ter estado em muitos lugares da terra e ter visto muitas coisas e os seus contrários para poder afirmar tal coisa como uma sentença irrevogável ou como a verdade Bíblica. White Dog já está a preto e a branco nos créditos iniciais, continua simplista no tempo em que a câmara varre o terreno à altura do cão e depois ainda mais quando sobe até ao ponto de vista humano na luta decisiva entre o racional e o manipulado (ao ponto de vista rafeiro sucede-lhe o ponto de vista de um deus), determinismo onde a moral sem remédio da punição cega que não olha para a fonte e para o caso singular – a burocracia da máquina legislativa do ontem, do hoje e tragicamente do nosso amanhã - parece irresolúvel e passível de engolir a grande história de amor que este filme o é a níveis Shakespearianos.
Isto até à cena decisiva que é a chave ou a luz desse beco sem saída, logo depois da morte do negro na igreja, o coração das trevas rasteiras a misturar-se nas trevas do sagrado. A rapariga inocente que se apaixonou pelo cão racista deixa de acreditar que tudo é possível pela dedicação e compaixão e pede ao negro que termine esse diabo sem remédio. Mas o negro que corre risco de vida acredita cada vez mais e assim começa a soltar-se outro tipo de descarga Fulleriana que talvez seja a essência da sua empreitada: violência para a violência, violência cura-se com violência, tipo superior de violência, que pode ser ainda pior, que pode ser amor total. Paradoxos revolucionários. Jean-Marie Straub, nos antípodas do americano, ainda hoje acredita nisso. «Não desistas agora... não sejas como os outros... esta é a oportunidade única» é isto o que o negro diz à inocente que por momentos cegou, como se estivesse quase a encontrar a cura para o cancro ou a ressuscitar a matéria de um morto. Séculos e séculos de intolerância em ebulição.
Voltas e mais voltas, psicologia e instinto, caretas à danação suprema, sobretudo instinto e entrega despida como a carne em sangue oferecida, e o cão começa a ganhar um amigo, quase como nos contos infantis; e a aceitar o amigo do amigo; e também a acreditar. O milagre absoluto ou a prova de que os dois seres mais diferentes do mundo podem ser o mesmo em determinada hora e espaço. Mas White Dog é uma tragédia redimida pelo amor. De onde o final irracional não se pode explicar. De onde não há caso exemplar. É o vértice insuspeito do triângulo clandestino que é atacado, fazendo tábua rasa da fé. E incrivelmente, quando já se via o final feliz, mais uma vez cada espectador terá de escrever o fim da história. Isto é, da sua história. Do caso singular no caos que construimos. A casa e o mundo.
White Dog é uma tragédia, ataca-nos a todos, mas também nos deixa espaço para a entrega irracional da inocente, do negro e do velho que com ele formou outra Arca de Noé e um cosmos onde um dia será ou não possível um mundo novo. Coração de Fuller, o newspaperman que não fazia filmes humanitários mas sim melodramas carregados de acção. Que diferença para o modo como hoje tratamos os semelhantes.
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