quarta-feira, 22 de março de 2017

Do the Right Thing (1989) de Spike Lee



por José Oliveira

E com Do the Right Thing o cinema americano olha uma vez mais para um dos seus abismos centrais e fundadores, mais do que a luta entre brancos e pretos: a demarcação territorial, a comunhão entre as diversas raças e crenças, o sentido de pertença, como na Bíblia. Pois se é óbvio que neste filme Spike Lee mete em confronto “o seu lado” e diversas outras cores e culturas, são bastante evidentes as fracturas que existem no seio de qualquer uma das comunidades, numa complexificação das relações que partem da evidência interna para a perene irresolução da coexistência a níveis universais – uma linha tortuosa e contraditória que vai do D.W. Griffith não só da guerra civil de The Birth of a Nation mas de todas as guerras em Intolerance: Love's Struggle Throughout the Ages; o John Ford da mesma guerra, dos índios e cowboys, do mesmo Lincoln de Griffith e da oração de corpo inteiro chamada Cheyenne Autumn; enfim, o vietname lá mesmo, na Chinatown do presente ou no Wyoming do século XIX de Michael Cimino. 40 Acres & A Mule Filmworks, assim se chama a sua produtora, que tanto filmou o caroço da grande maçã como O Milagre em Sant'Anna

Veja-se o jogo sujo do racista Buggin' Out (o radical vaidoso das Jordans) ou o romantismo amansado e abafado pelo caldeirão do patrão interpretado por Danny Aiello; o romantismo expansivo e ali ridiculamente compreendido desse Da Mayor bigger than life que faz serenatas e salva crianças ou o racismo de John Turturro. Num pântano movediço e em temperaturas para além do que costumamos aguentar o animal irracional e primário que em todos nós pode haver ou solta-se ou volve-se noutra coisa excêntrica para além do meio. Do the Right Thing é como um mosaico, ou um tabuleiro de xadrez onde o aleatório pode regrar severamente, um palco com todas as personagens do mundo e dos tempos e actualizando a tragédia clássica (todos os nomes e títulos, do arcaísmo imemorial até ao rap), e um inescapável Western, a medida que combinou tudo isso. Radio Raheem (descendente directo do perigosamente iluminado Harry Powell de Mitchum no The Night of the Hunter) unido com a dança inicial e iniciática de Rosie Perez e o grito de revolta dos Public Enemy. Os jovens inconscientes liderados pela personagem de Martin Lawrence que são capazes de reconhecer o lado bom de Aiello e o triunvirato que passa as tardes à sombra e na moinice a culpar tudo o que mexe para não se culpar muito a si. A Rainha Mother Sister, da cepa da Ana de António Reis, da Jane Darwell de Ford ou da Jo Van Fleet de Kazan que poderá deixar ecos na irmã de Spike Lee. Os policias acéfalos, medricas e humanos não muito longe dos Coreanos que podem vestir qualquer camisola. E poder-se-iam continuar a enumerar infinitos casos, reflexos, acasos, espelhamentos, ligações subterrâneas ou consanguinidades dúbias e puras entre amarelos, brancos, pretos ou mestiços. 

O que Spike Lee anda a tentar perceber há muito tempo é o mesmo que Ford ou Griffith tanto tentaram e se calhar acabaram por ficar a perceber ainda menos. Robin Wood, o grande crítico de cinema inglês, considerou Do the Right Thing seminal mas recusou-se a desenvolver pois não se conseguia meter na experiência ou na pele de um Lee. Ou seja, precisamente o que nos créditos finais lemos de Martin Luther King ou Malcom X, que violência cria violência e não é o caminho mas que muitas vezes ela tem de ser usada e é inteligência. A perene irresolução. Por que é que o distribuidor de pizzas vivido significativamente por Lee – entre o bobo das tragédias e o pedinte das mesmas – começa a rebelião à loja onde trabalha (a não ser que tenha mesmo acatado o conselho de Da Mayor – always do the right thing!) e como se justifica conscientemente a paixão secreta, porventura platónica e adolescente de Aiello pela irmã de Lee? É um sem número de perguntas que possibilitam um sem número de respostas que tanto podem cair na demagogia dos retratos de parede dos negros colados pelo tolinho de todas as épocas na parede ardida dos brancos como no porquê do ódio entre os dois filhos de Aiello. 

E passado o fogo que muito limpará para novas primaveras e infernos loucos muito acima da ciência dos termómetros poderem ressurgir, derretida a fantasmagoria dos Public Enemy a soarem postumamente nas cinzas e esfriado o corpo morto de Raheem, vamos apreciar um duelo como no género americano do cinema por excelência, auge de vários duelos, conscientes e inconscientes, como aquele entre o mesmo Raheem e os Sul-americanos na disputa da mais alta potência sonora. Lee e Aiello, os dois seres mais complexos da arena, do teatro clássico e das máscaras ou do Hip hop (ying and yang, hippy and hoppy, segundo o profeta Love Daddy), enquadrados pelos joelhos e depois inteiros, planos mais do que americanos, travam-se de razões sobre honra, dinheiro, sobre como se deve continuar a cavalgar. Mister Señor Love Daddy - as Sam Jackson - tudo observa novamente da sua janela para a eternidade, tudo resume, comenta, deixa em aberto, elide e faz o seu julgamento dos deuses. Tiro para ali, defesa para acolá, as coisas resolvem-se, o sol começa a esconder-se e a nova luz a advir, a grua do cinema sobe e o palco deixa-se limpar para novas cenas. 

Do the Right Thing - purgatório martelado a vermelhão dos tijolos maciços e comuns e das tintas baratas que não duram, do alcatrão fresco a esfumaçar ao braseiro e do metal das grades corroídas, dos passeios grandes como ruas típicos dessa cidade que só os lixeiros ou os polidores-de-esquinas profissionais tratam por tu - já é um “joint” essencial pois é uma lupa que saca uma só velocidade do arsenal de efeitos e de técnicas e movimentos que a máquina aplica para nos deixar ver melhor todos os comportamentos nossos e o que pensamos que dominamos. Como aquele momento no soberbo He Got Game (a preparação para a sua grande obra-prima) em que o Pai e o Filho, entre cartas vitais (a carta da Mulher) e a alta noite da reflexão, dominam a sua bola separados pela distância mas sintonizados pelo jogo que os representa e funde, onde o som da bola de um passa para o outro que já deixou de jogar com a sua, mil velocidades e metafísica que se torna perfeitamente simples, material e austera na captação cientifica do sentimento mútuo. Ou as mil quebras de raccord pela repetição dos gestos sagrados - abraços, beijos, olhares... - em 25th Hour (a sua obra-prima e o grande filme americano dessa década juntamente com vários de Clint Eastwood, Miami Vice e Zodiac) que só almejam perdurar mais um segundo que seja a fruição dos bons sentimentos e a sobrevivência das quimeras do infinito e da imortalidade da infância. Milhões de velocidades, uma única velocidade, a da emoção. 

Lee, que continua a ir a todas sem freios, combinando voos altíssimos com momentos e quedas naturais, filmando apenas com uma pesada câmara de 35 mm ou com um monte de minúsculas digitais, decupando pacientemente ou com raiva, atirando-se a vampiros em milésima obsessão com a desmultiplicação de Jesus (sacro, terreno demais ou místico; da Galileia, de Brooklyn ou de um court algures) ou vendo o basquetebol como extensão estética e existencial do quotidiano; videoclipes musicais ou até videogames; marcando a sua têmpera e a dos injustiçados em pedaços de actualidade – a dimensão monumental de When the Levees Broke: A Requiem in Four Acts; e filmou Edward Norton de maneira tão pungente como as danças e os socos de Perez, e entre a revolta de uma para com o mundo e a de outro para consigo mesmo, entre a culpa estraçalhante dele e toda a energia e fogosidade dela, está o espectro riquíssimo de um cineasta essencial. Esperemos pelos próximos episódios. Amen, SL.

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