quarta-feira, 15 de março de 2017

Running on Empty (1988) de Sidney Lumet



por José Oliveira

Sidney Lumet é um nome que faz muito sentido no nosso percurso pelo cinema americano, depois de já termos passado por Don Siegel ou Sam Peckinpah, mas sobretudo pelo caso singular de Robert Mulligan, um parceiro e sócio de Lumet. Para tudo ficar ainda mais justo faltaria Alan J. Pakula, também cúmplice dos dois últimos – o ir até ao fim do mundo pelas verdades essenciais que é o suor de All the President's Men cairia que nem uma luva. Homens que passaram pela televisão e humildemente muito aprenderam com ela, trabalhadores de manhã à noite, entre os estúdios e a rua, mas que chegados ao cinema souberam manter o melhor dessa outra esfera e mergulhar nas especificidades e no universo com sempre tudo por descobrir que esta arte por natureza conserva. 

Lumet é um caso particular, tal como todos os outros citados, da candura de Mulligan ao suicídio de Peckinpah, pois tratou praticamente todas as suas obras como se de uma grande e primeira cruzada se tratasse: ao mesmo tempo uma exposição dos mecanismos do cosmos que decidiu filmar e alguém ou um grupo a tentar mudar a situação – a inacreditável audácia individual de Henry Fonda a ser espalhada em 12 Angry Men ou a Polícia corrupta de Serpico contrariada pela honestidade quase infantil de Al Pacino – bem como uma moral e um instinto social antropológico que nos faz perceber o que importa dos locais, da diferença intrínseca aos humanos e da ambiência geral onde a acção se passa. E isto liga-o a uma tradição fundamental e rara, a um depositário que importa manter: à moral e à ética férrea de incorruptíveis como Fritz Lang ou Claude Chabrol, aliando à postura de fundo uma forma cinematográfica dura e imperturbável, onde jamais poderá haver traição. Tudo isto para dizer que o filme de hoje, mantendo essa verticalidade, e até complexificando-a ("virtudes" e cobardias do terrorismo moderno sem apelo), é um caso sem muitos Pais ou Filhos em termos de Hollywood, fluindo em ritmos próximo do Harry & Son que há pouco vimos ou no estelar The Man in the Moon, a despedida e a lembrança a este mundo de Mulligan. 

O que se pinta lentamente na tela são as impressões concretas e fugazes do crescimento, da primeira e marcante consciência dos graus de solidão prometidos a qualquer um, a largada às feras e o amor e o sexo e a morte no mesmo espaço e no tempo comprimidos, enfim, as questões existenciais a fluírem num ritmo naturalista que nada tem de tentativa fotográfica das nossas acções e paisagens feitas "imagens de marca", mas antes naturalismo temperado, vincado, correndo vez única pelo sangue (personalidade) em causa, deambulações sempre passadas no eterno agora. Mas Running on Empty é de outra loiça ainda, vai mais forte e mais fundo, vai mesmo às raízes e constituição do que colhe, quase acreditando ou por vezes acreditando mesmo na revelação do ardor invisível. Caso solitário no cinema americano, visto que até as durações do tempo de cada plano e o sentido da montagem estão dependentes de uma câmara que perscruta ardentemente o movimento dos actores no seu meio, sem legislação ou planeamento obrigatório; onde a música não tem a função de ligar ou de reconciliar o irreconciliável, chegando a uma filiação ao cinema fogoso, autobiograficamente descarnado e em primeiro grau do francês pós-Nouvelle Vague Jean Eustache como nunca se julgou possível por tais paragens. 

E tudo isso, todo esse cúmulo e aflorar da nossa mais básica sensibilidade, do nosso interior e pele, aparece logo nos primeiros momentos, sem precedentes, imagem e som e movimento com vida própria. Os fragmentos do basebol, impassíveis, precisos e terrenos e quase a transcenderem - antes de Eustache o cinematógrafo de Bresson; para transcenderem de seguida, na perseguição: as voltas e reviravoltas da bicicleta ao vento, perfeitamente exposta, em conjugação com os animais e segredos escondidos e revelados pelo som, as ervas e as canas diversas a vibrarem, os limites dos céus com as nuvens, a fuga, a velocidade e a acalmia, a casa e os limites da terra toda, o animal de estimação e o irmão – o petiz e o adulto. "Escondidos para vivermos felizes", e essa poesia mítica, a minúscula narrativa; mas logo o resto do filme, a grande história e a América toda em ebulição clandestina. Está já ali o Vietname, a militância, o terrorismo, as causas sociais e ligadas à terra, e toda a ressaca posterior – mais à frente uma personagem que vem atrasada mais de uma década vai constatar que já não existem causas, que já lutam por nada, que são espantalhos ou loucos anacrónicos num mundo "resolvido" e técnico. Ou seja, que correm num vazio, no vazio, fuga invisível que sintetiza a política do contemporâneo. 

Running on Empty é sobre isso, se um tema tivesse de ser preenchido: a desilusão e o peso das lutas talvez inúteis, que pouco ou nada mudaram o mundo, utopias que estilhaçaram terceiros, danos colaterais que jamais poderão abandonar o presente e a rememoração. Conto onde todos parecem permanecer crianças, ficando em grande-plano – repare-se como os verdadeiros "crescidos", os monstros, nas linguagem e retórica dos protagonistas, ficam fora-de-campo ou num campo afastado e difuso – aproximando-se ou continuando poeticamente o universo de Mark Twain. As subidas às casas pelas árvores, as passeatas e namoros à beira água, noites e florestas fantásticas e fantasmagóricas fascinantemente ligadas às de Huckleberry Finn. Por isso a cena entre a Mãe de River Phoenix e o pai desta é exemplar, carregadíssima, ligando os tempos, as heranças, proporcionando espelhos e redenções: ela entrega ao seu pai o filho dela que certo dia foi ela mesma; e assim a filiação, a natureza ou segredo disso tudo permitem todos os ciclos e reinícios, ainda antes da metafísica. 

Mas se já vimos alguns destes filmes neste ciclo – e há muitos e muitos outros que ficaram de fora, como por exemplo o Fat City de John Huston que esteve quase a entrar – o que torna tudo inolvidável é então o vazio lancinante do nada e da culpa desperto e consciente pelo naturalismo ardente, feérico e cravado no mesmo corpo, um fluir corado e em gestação, uma liturgia que dispensa a solenidade pela via ontológica e constituição inata, orgânica e original do olhar que sente. A máquina de Lumet é movimentada e orientada por uma busca, uma sintonia mas também uma libertação. Que é o arco da nossa dinâmica e gravidade. Um sentido de pertença, de comunidade, mas logo e imediatamente o clamar insondável, o sussurro de um além, que pode ser sexo ou crime. Todo este fluxo de pura acalmia e energia tecidos sem a mentira do estilo, precisamente Jean Eustache e a infância e transgressão compassados lucidamente (Mes petites amoureuses claramente mas mais melindrosamente La maman et la putain), o que alguns também chamaram surdina. Sem a mentira do estilo, captando tudo, das montanhas se as houver até à cozinha da Mãe, em espaço de câmara, sacro e corrente. Biografias sem rede nem distância sã. Sem a protecção do estilo. Sem protecção. Sem o necessário aconchego do estilo. O abismo de Eustache e o abismo do olhar e do rastilho cadente de River Phoenix. Só um grande cineasta e um grande ser para trazer esse jovem que envolto em certa luz parece já sem idade e como que saído do Éden – já era assim no belíssimo Stand By Me - para a nossa porta.

Sem comentários:

Enviar um comentário