quarta-feira, 8 de março de 2017

The Sicilian (1987) de Michael Cimino



por João Palhares

Talvez se torça muito o nariz a este The Sicilian (e eu sou uma dessas pessoas) por causa de Christopher Lambert, actor francês com as suas limitações mas em quem Cimino viu qualquer coisa, e que passará sem dúvida pelo ardor do olhar de que nos fala F. X. Feeney na sua apresentação a este filme. A estranheza sente-se mal começa o filme, o Giuliano de Lambert parece doutro mundo quando comparado à gente que gravita em torno dele. Mas Cimino consegue trabalhar essa estranheza de forma a elevá- la a um contraste constante entre um ser mítico e os comuns dos mortais. Como as estátuas de Leone em Once Upon a Time in America, filme fabuloso que falhou este ciclo mas que é um dos grandes monumentos do cinema americano dos anos oitenta. Esse trabalho talvez chegue à altura dos seus propósitos e das suas aspirações nas muitas cenas em que Lambert aparece no topo de montanhas, como se fosse a sua continuação lógica e natural, um ser igual à natureza na sua beleza e nos seus actos e manifestações injustas. Um ser mitológico e ancestral. Se nos outros filmes de Cimino se assiste a uma transformação gradual nos homens para merecerem esse pé de igualdade com a natureza (The Deer Hunter, Desperate Hours, The Sunchaser), em The Sicilian a transformação dá-se logo no início, quando Giuliano sobrevive a um disparo que devia ter sido fatal. 

The Sicilian é também o filme mais compacto de Michael Cimino, em que tenta fazer passar o máximo de ideias numa só imagem, trabalhada ao mais pequeno pormenor. Pensemos no Príncipe Borsa interpretado por Terence Stamp, dono de milhares e milhares de quilómetros de terra mas que é asmático e só está bem fechado no seu quarto com os seus discos e os seus livros. O contraste absoluto com o Giuliano que não é dono de nada mas aparece como o herdeiro legítimo das montanhas e dos vales da Sicília, representando o povo que morre à fome e não tem terras para cultivar. Os travellings belíssimos e tão ciminianos da duquesa que se vai despindo para tomar banho enquanto a empregada apanha as roupas do chão; os jantares e os almoços dos vários líderes e decisores dos destinos sicilianos (lembremos o que disse Cimino a Bill Krohn: "um grupo de homens, sentados à volta de uma mesa, numa suite de hotel, enquanto comem o pequeno-almoço ou o almoço, a comer comida fina de bela porcelana, num ambiente agradável, a discutir calmamente quantas pessoas vão matar..."), a rapidíssima cena do casamento de Giuliano com Giovanna (interpretada por Giulia Boschi), em que os incidentes e as suas consequências nos são comunicados de forma tão económica, e que só um grande artesão podia realizar; a tosse que anuncia a personagem de John Turturro, Pisciotta (“I’d know that cough, anywhere”), sempre com implicações diferentes até à tragédia do final do filme; a procissão de aforismos no topo da montanha nesse rapto tão estranhamente pacífico e cordial do Príncipe Borsa (Giuliano: “That’s metaphysics, Aspano”, Aspano: “That’s bullshit, Giuliano”, Borsa: “That’s life, gentlemen”)... 

Reconhecendo isto tudo, não sou capaz, no entanto, de reconhecer a The Sicilian a grandeza de obras passadas ou futuras de Cimino. Há outras estranhezas com que não fui capaz de me pacificar (nesta revisão fiz as pazes com a interpretação de Christopher Lambert, talvez no futuro e noutras revisões entenda melhor outras coisas). Apesar de saber da ascendência italiana de Cimino (há uma montanha em Itália com o nome da sua família), posso torcer o nariz por ser a única obra dele que não se passa na América. Apesar de Heaven’s Gate lidar com personagens e pessoas que existiram e viveram mesmo, The Sicilian é o único filme de Cimino que lida com uma grande figura histórica. Talvez passe por aí. Também acho que Cimino experimenta aqui coisas pela primeira vez que surgirão perfeitamente trabalhadas e compostas em Desperate Hours e The Sunchaser (a sucessão rápida de imagens justapostas com certas frases para chegar a uma espécie de catarse ou libertação - o final de The Sunchaser, o início de Desperate Hours...).

Mas como diziam os críticos dos Cahiers du Cinéma, o pior filme de um grande cineasta bate aos pontos o melhor filme de um cineasta banal e The Sicilian prova-o.

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