sábado, 11 de março de 2017

51ª sessão: dia 14 de Março (Terça-Feira), às 21h30


Running on Empty é um dos mais belos e sensíveis filmes da década de 80. Longe da dureza, da incorruptibilidade e da justiça arrancada ao inferno urbano que fez a fama de Sidney Lumet - os igualmente fabulosos Serpico, Dog Day Afternoon ou Prince of the City - trouxe para o seu lado o magoado River Phoenix e ao perscrutar-lhe o interior escutou o passado e o bater cardíaco da essencial América que vive e sobrevive nas sombras. Delicado e dilacerante, ainda hoje não se acredita como foi possível tratar assim tanta ferida. Um filme para toda e todas as famílias, absolutamente imperdível. É a nossa próxima sessão.

José Lopes, actor e homem do mundo todo que sempre procurou dar voz a quem não a tem e nos visitou em Janeiro do ano passado para falar sobre o seu trabalho em Adeus Lisboa, apadrinha esta nossa sessão e vai falar sobre Lumet e o seu filme num vídeo de apresentação.

Sidney Lumet escreveu um livro essencial chamado Making Movies, em que além de tudo o que atravessa o processo de fazer um filme, acabou por abordar também o caso particular de Running on Empty, confessando que "Eu tento sempre eliminar as explicações de patinho de borracha. Uma personagem deve ser nítida pelas suas acções presentes. E o comportamento dela à medida que o filme avança deve revelar as suas motivações psicológicas. Se o escritor tem de expor as razões, algo está errado na forma como a personagem foi escrita. O diálogo é como qualquer outra coisa nos filmes. Pode ser uma muleta, ou, quando bem usado, pode realçar, aprofundar, e revelar. 

"O que é que eu devo ao escritor? Uma investigação minuciosa e depois uma execução comprometida das suas intenções. O que é que o escritor me deve a mim? O altruísmo que Frank Pierson mostrou em Dog Day Afternoon ou o que Naomi Foner mostrou em Running on Empty

"Naomi é uma bela escritora, talentosa e original. De alguma maneira apaixonou-se por uma cena que, para mim, era a única má ideia dela no filme todo. O rapaz, interpretado por River Phoenix, chega a uma casa estranha, senta-se ao piano, e começa a tocar uma sonata de Beethoven. Eventualmente, repara que está a ser observado por uma rapariga, mais ou menos da idade dele. No guião, continua com música boogie-woogie para piano. 

"Eu expliquei à Naomi porque é que achava que era uma má ideia. Havia um sentimento de indulgência para com o público: Ouve, ele não é propriamente um rato de biblioteca—gosta de jazz, tal como eu e tu. Tinha visto a mesma cena tão para trás no passado como o José Iturbi a acariciar as teclas num filme remoto com Gloria Jean ou a Jeanette MacDonald a cantar swing em San Francisco. A Naomi lutou por ela, portanto decidi deixá-la no filme para ver como corria nos ensaios. Quando comecei a dirigir a cena, o River perguntou-me se podíamos cortar aquele pedaço. Sentia que era falso. Vi a Naomi a empalidecer. Começámos a falar sobre o assunto. O River disse à Naomi com grande simplicidade e sinceridade como aquilo comprometia a sua personagem. (Foi encantador ver este jovem de dezassete anos a discutir com uma escritora séria com o dobro da idade dele.) Por fim, sugeri que a experimentássemos durante alguns dias para ver se tinha algum valor. No fim dos ensaios, a Naomi veio ter comigo. Disse que não se importava que eu tivesse que forçar para acomodar a cena, mas não aguentava ver o River a virar-se do avesso para a fazer funcionar. Ela adorava a cena, mas disse, Vamos cortá-la."

Quanto a Jacques Lourcelles, o grande guia e sábio ainda vivo do cinema, aproveitou a sua entrada sobre The Group no Dictionnaire du Cinéma, para falar sobre Lumet e os seus grupos, escrevendo que "a partir do seu primeiro filme, Doze Homens em Fúria, adaptação do célebre drama televisivo de Reginald Rose sobre o funcionamento de uma reunião de jurados, Lumet dedicou grande parte da sua obra a estudar a compatibilidade e a coesão de certos grupos, dinâmicos ou imóveis (mas a imobilidade num grupo é só aparente e representa uma forma paradoxal da sua dinâmica). Essa tendência fundamental, por vezes mantida latente na sua obra, recebe o tratamento mais evidente e mais ambicioso nesta adaptação fiel do "Grupo" de Mary McCarthy, romance que Lumet, de resto, não gosta. A grande originalidade do filme, que torna claro o rigor do trabalho de Lumet, consiste em apresentar esse grupo na sua unidade interna sem que qualquer elemento (ou personagem) exterior lhe venha sublinhar artificialmente as características. Cada uma das oito figuras femininas desenhadas no filme é um componente, uma eflorescência do grupo, nunca verdadeiramente em oposição ou conflito com ele. Evitando a facilidade do dramatismo espectacular, Lumet dá rédea livre aos seus talentos como director de actores - e sobretudo de actrizes (as personagens masculinas ficaram intencionalmente caricaturais ou cómicas). Direcção baseada na subtileza, na nuance, no detalhe, no trabalho em profundidade, no baixo contraste, na recusa do estrelato e do grande órgão. Lumet repele assim - e é uma das grandes audácias do filme - o processo de identificação do espectador por esta ou aquela personagem, resultando em que o destino de cada uma das heroínas não escape a uma certa penumbra, uma espécie de desgaste lento, um pouco triste e monótono, das suas ambições e dos seus sonhos. Quase tudo aqui é da ordem do compromisso, do acordo um pouco medíocre (mas nunca vergonhoso) que permite a sobrevivência das raparigas do Grupo e do próprio Grupo. Só Kay, ao longo dos seus 33-39 anos, cairá na tragédia; embora se trate de uma tragédia acidental sem romantismo nem intensidade sombria. Quase nenhuma das amigas conseguirá (e no entanto era o objectivo comum delas) afirmar-se como mulher e livrar-se da influência masculina no que ela tem de sufocante e devastador, excepto a lésbica Lakey, ironicamente. É difícil, primeiro por estar em plena evolução, mas também pela sua natureza e mesmo a sua ambição, avaliar globalmente a obra de Lumet, espécie de mosaico de mosaicos em que cada filme traz o seu desenvolvimento ao desenvolvimento geral. Talvez acabemos por reconhecer nele o cineasta mais obstinado e mais imprevisível da sua época. Vários dos seus filmes serão sem dúvida a redescobrir. Na década de oitenta, recomendam-se particularmente o deslumbrante Prince of the City (O Príncipe da Cidade, 1981), Daniel (Daniel, Passado Sem Resgate, 1983) e Running on Empty (Fuga Sem Fim, 1988), filme surpreendente sobre um grupo em movimento, confinado à clandestinidade e constantemente ameaçado pela ruptura, em que o autor inventa uma enésima maneira de tratar o seu tema predilecto. Porque Lumet também é, através de uma filmografia muito desigual, um dos últimos verdadeiros autores do cinema americano."

Até Terça-Feira!

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