por João Palhares
Numa indústria tão profusa e abundante como a de cinema dos Estados Unidos da América,
talvez seja normal alguns filmes passarem despercebidos e, com eles, também alguns realizadores.
O nome John Flynn, mesmo agora, pouco dirá a muita gente. Rolling Thunder, que Quentin
Tarantino escolheu para a sua lista da Sight and Sound de 2012, talvez seja mais conhecido como
o filme que Paul Schrader escreveu (foi até promovido desta maneira por alturas da estreia) e Lock
Up e Out for Justice apesar de passarem muito em televisão, são vistos como obras competentes
mas anónimas. Recomenda-se, no entanto, a leitura da segunda edição da revista FOCO a quem quiser saber
mais sobre o lugar do realizador no cinema americano (e não só).
John Flynn aprendeu o ofício do cinema nos bastidores de alguns filmes de Robert Wise,
John Lee Thompson e John Sturges, tendo sido do último (crença minha, pensando em Bad Day at Black Rock e Escape from Fort Bravo, principalmente) que herdou a
simplicidade. Admirador confesso do cinema de Jean-Pierre Melville, conseguiu fazer de The
Outfit uma espécie de homenagem ao francês. Influências à parte, o que parece trespassar
constantemente pela obra de Flynn, é a presença de homens que, por uma razão ou outra, se vêem
obrigados a recorrer a actos de violência. E, sim, há pontes incontestáveis entre o Duvall de The
Outfit, o William Devane de Rolling Thunder, o Dennis Hopper de Nails, o Christopher Walken
de Scam, o Stephen Baldwin de Absence of the Good e, claro, o James Woods de Best Seller. Em
Absence of the Good, o personagem de Baldwin explode à frente da psicóloga interpretada por
Tyne Daly, quando lhe pergunta se já assistiu a algum acto maligno (evil act) e ela lhe diz que não:
“Then don’t judge me!“, é o remate de Baldwin. Comecemos por aqui.
Quando Cleve (a personagem de James Woods) aparece pela primeira vez em
Best Seller, julgámo-lo do outro lado da linha de comboio (é uma artimanha visual mas que
pode muito bem ter sido feita no mesmo plano) e depois aparece-nos atrás de Dennis (Brian Dennehy),
do mesmo lado. O lado de cá e não o de lá. É uma sequência que apresenta com toda a evidência o
dilema entre Dennehy e Woods (que é como dizer que é um filme que sabe muitíssimo bem ao que
vem). Dennis nunca o aceita, vê-o sempre como um monstro e quer só escrever sobre ele. “Maybe
one day I’ll surprise you, Dennis“, diz-lhe Cleve. Talvez um dia se vejam no outro lado. O dilema
começa e é resolvido com Woods em off, disfarçado no assalto ao arquivo da polícia no início e em
voz-off no fim do filme. Ele parece vir sempre dum “além” longínquo e é bem capaz de ser com o
Walken silencioso de Scam ou o Baldwin morto-vivo de Absence of the Good, a personagem mais
enigmática da obra de John Flynn. Sem julgamentos prévios ou póstumos da parte de quem filma,
ficam as perguntas em relação às “monstruosidades” do submundo. O sacrifício de Cleve no final
de Best Seller, o pesadelo inicial e o terror de Baldwin a citar Santo Agostinho e a “ausência do bem” e o barco a levar Christopher Walken pela escuridão do final de Scam. Não é coisa pouca.
Não é, não.
O Bem e o Mal são coisas muito complexas e profundas. Mas o terror já citado de Baldwin
ao perceber que o mal é só a ausência do bem é uma revelação. É muito confortável para toda a
gente pensar que o “mal” é uma presença e que tem encarnações. O terror verdadeiro é perceber que
somos todos responsáveis. Mas sobre isto sei pouco portanto é melhor calar-me e voltar aos filmes.
O talento “anónimo” de Flynn espalha-se em várias sequências deste filme (como da obra)
de maneira quase invisível. Custa de facto a ver porque nada é denunciado. Já se falou dos planos
da linha de comboio, portanto fale-se agora das peças de conversa entre Dennis e Cleve. A do bar,
em que pelo vício de Woods em queimar as mãos com as pontas dos cigarros (vício que apanhou de
Debbie Harry no Videodrome de Cronenberg), Dennis descobre que Cleve não é quem diz ser.
Repararam na economia, na serenidade e na classe absolutas dessa cena? O filme é palco para as
personagens se olharem de cima a baixo e nos envolverem num processo de revelações e
confrontações, com interpretações concentradas num jogo que se imerge
extraordinariamente na acção. Um embate de forças. Ou noutra cena, quando o advogado e o
capanga de Madlock vão ao escritório de Dennis e este os desanca primeiro com palavras e depois
com acções. Hino à inteligência de Brian Dennehy. A mesma coisa que o embate de Spencer Tracy
e Ernest Borgnine em Bad Day at Black Rock do mestre Sturges. Mas há mais. Quase a meio do
filme, há uma sequência que desconstrói com grande precisão uma linha de
acção num guião. Uma coisa simples, simples, simples e que seria despachada rotineiramente e com
imensa preguiça na maior parte dos filmes. Vejamos… “Cleve entra na foto-cabine e degola o
taxista”. Como se mostra isto? Plano 1: pormenor da mão de Cleve a inserir a moeda para a cabine;
Plano 2: Cleve sai da cabine; Planos 3, 4 e 5: Cleve entra noutro táxi; Planos 6, 7 e 8: (compasso de
espera) e saem as fotos do taxista; E eu digo: Jesus! John Flynn!
texto publicado originalmente no site À Pala de Walsh (com algumas alterações para esta folha), a 25 de Outubro de 2012
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