Em 1955, Mizoguchi lança o seu primeiro filme a cores, ambientado na China do século VIII e com os amores do imperador Xuanzong e da sua consorte como principal objecto e inspiração. A Imperatriz Yang Kwei Fei é a nossa próxima sessão e poderá ser visto no grande ecrã para que foi feito e pensado. Será nos cinemas do Braga Shopping.
Yoshikata Yoda, que nos tem acompanhado na descoberta de Mizoguchi, escreveu nas Souvenirs que "na primavera de 1955, Mizoguchi realizou Yokihi (A Imperatriz Yang Kwei-Fei) em co-produção sino-japonesa. O projecto tinha-nos sido proposto por Run Run Shaw de Hong Kong. Redigi o argumento com Tsuji Kyuichi e Masashige Narusawa. Era a primeira vez que fazíamos um filme inspirado na história da China. Mas se Mizoguchi era um grande admirador de objectos de arte e um conhecedor da estética e dos costumes da época chinesa Tang, eu, pelo contrário, era completamente ignorante. Mizoguchi levou-me várias vezes a visitar museus, templos. Aprendi assim como a nossa civilização da era Nara tinha sido influenciada pela da era Tang. Eu fiquei chocado e deslumbrado com a civilização desta época chinesa que estudava por meio de todos os documentos disponíveis: Lamento do Longo Sofrimento, poema de Po Chu-Yi, ou Balada do Alaúde, poema de Du Fu, que contam os amores célebres do imperador Wei-Song e de Yang Kwei-Fei: a Revolta de An-Lou-Shan; o significado histórico da Rota da Seda, da Zona do Oeste: a civilização dos Igres; o papel dos eunucos, dos haréns; as festas, os costumes chineses, etc. Mas tive muitas dificuldades. No argumento inicial, para pôr bem em relevo o carácter fundamentalmente intrigante de Yang Kwei-Fei, queria insistir pelo menos em dois pontos (que são de qualquer forma historicamente autênticos): 1) Ao princípio, Yang Kwei-Fei era a mulher legítima do príncipe Tch'iu, filho do imperador Wei-Song. Mais tarde é promovida ao posto de imperatriz. 2) Chegada a imperatriz, Yang Kwei-Fei deixa de dissimular: o orgulho e o egoísmo dela são exibidos em plena luz do dia. Mas não tivemos estes elementos em conta, em primeiro lugar para simplificar a intriga, e sobretudo para fazer de Yang Kwei-Fei uma «heroína»; fizemos dela uma mulher pura e ingénua que a sua comitiva explorava por interesse. Isso levou-me a um esquema melodramático. De repente senti-me muito longe do argumento. Foi o senhor Kawaguchi quem fez a redacção definitiva. Yôkihi foi o primeiro filme a cores de Mizoguchi. Acredito que ele tenha estudado as cores dos templos e dos objetos de arte de Quioto para encontrar a cor exacta do seu filme. Depois de Yôkihi, Mizoguchi realizou Shin Heike Monogatari (O Herói Sacrílego, 1955), a partir da primeira parte do romance «best-seller» de Eiji Yoshikawa. Foi o segundo filme dele a cores, mas Mizoguchi não atribuía assim tanta importância aos problemas da cor. Foi a Companhia que lhe impôs a rodagem a cores. (Os dois filmes foram rodados em «Daieicolor».) A qualidade da cor ainda era medíocre. Mizoguchi considerava a cor no cinema um elemento artificial."
No prefácio à tradução francesa do livro de Yoda, Jean Douchet escreve que "Mizoguchi sempre teve um problema com o potencial melodramático das situações que põe em cena. Enquanto não consegue reduzir o melodramático, sem necessariamente o fazer desaparecer e mantendo toda a sua força emocional, enquanto não consegue controlar o realismo e o naturalismo que lhe servem como roupa, não está à vontade. A partir de 1950, ele consegue superar essa dificuldade, e é então a série das obras-primas em que não existe impureza nenhuma, equilíbrio perfeito entre a preocupação pela realidade e o carácter emocional do melodrama, com essas possibilidades de exageração que não abandona, ousando às vezes abordar situações excessivas próximas da inspiração de Abel Gance ou de King Vidor, mais insistentes que as dos filmes de John Ford. Le Destin de Madame Yuki, portanto, que inaugura a série das obras-primas: a ideia dessa mulher apaixonada sexualmente por um marido que despreza soberanamente e que a repugna moralmente e socialmente, mas pelo qual é atraída fisicamente e de maneira irresistível, cria uma situação de uma violência assombrosa, de que Mizoguchi extrai todas as consequências, e primeiro as sociais. O que é prodigioso, é que uma vez que consegue dominar estas situações - que pede aos seus argumentistas para imaginar, não o querendo fazer ele próprio - Mizoguchi pode fazer quebrar todas as hipocrisias da sociedade. E é por aí que passa o discurso, não pela forma do combate, e é por isso que ele nunca será um militante da militância, o que as pessoas de esquerda lhe censuram, mas pela intensidade, a verdade do retrato que obriga a olhar como funciona o mundo. Se não pudesse dispor do material que constituem estas situações violentas e melodramáticas, Mizoguchi não conseguiria lá chegar. Chegou lá uma primeira vez nos dois filmes de 1936. Terá que esperar por 1950, e uma certa liberalização do que é político, para retomar a sua procura e a sua diligência. É a partir desse momento que se lhe vai colocar o problema da própria expressão desta situação. Conhece-se o exemplo célebre, a morte de Yang Kwei-Fei, cena para a qual levou três dias a encontrar a solução: quatro planos estúpidos, um vestido que se arrasta pelo chão, dois brincos que caem no solo, chinelos abandonados na terra, que qualquer fazedor de clips ou de publicidade poderia encontrar. E de repente estes planos carregam-se de uma intensidade e de uma violência emocional, revelando a revolta escondida da situação, o desinteresse sublime da mulher dedicada face à pequenez miseravelmente interessada do seu senhor e mestre. Mizoguchi leva-nos mesmo ao coração da ideia e da sua força afectiva. O pensamento, por um poder soberano de abstracção, transfigura estes quatro planos. A meu ver, é aí que se situa o seu génio: o facto de ir sempre ao fim da situação.
Na folha da Cinemateca sobre o filme, João Bénard da Costa escreveu que "Mizoguchi utilizou para este filme um processo que só havia usado antes em O'Haru: a construção em "flash-back". O filme começa com o imperador já velho (sabemos que é já um ex-imperador, que perdeu o trono e a quem vai ser retirada até a última morada) e só depois dessa introdução (presidida pela estátua de Yang Kwei-Fei, há muito morta) viveremos a vida do imperador, até, no final, voltarmos a ele, para a sua morte e para o seu reencontro, entre os mortos, com Yang. E repare-se como o décor muda da primeira para a última sequência: o que é ainda um apartamento imperial (no início) embora sem grandes sinais de opulência, volve-se em ruína no final. E quando o imperador cai morto aos pés da estátua, os seus chamamentos a Yokihi (nome japonês de Yang Kwei-Fei) são finalmente respondidos e ficam-se a ouvir, muito demoradamente, os risos deles, por fim reencontrados. É um final que pode ser comparado (salvaguardando todas as distâncias estilísticas) ao do The Ghost and Mrs. Muir de Mankiewicz, quando o fantasma de Rex Harrison vem buscar o fantasma de Gene Tierney. Só que, em Mizoguchi, tudo é ainda mais misterioso (se é possível) porque não há qualquer figuração. Yang veio buscar o amado, mas nem um nem outro estão na imagem. Mas a câmara avança como se eles avançassem também, como se os víssemos, e a imagem visual é substituída pela imagem auditiva, num colóquio sentimental póstumo e eterno. Num velho parque solitário e gélido, duas sombras se encontram como nos versos de Verlaine. E lembram-se. E lembram-nos. Passo ao "flash-back". E o prodígio da construção do filme consiste em, depois desse imponderável "travelling" através das sedas (ou melhor entre e sobre as sedas) que nos leva da velhice do imperador à sua juventude e de uma imperatriz morta a outra imperatriz morta ("adorador de mulheres defuntas" pode ser este definido) assistirmos a um "flash-back" aparentemente uno mas que se divide em três. Há o "flash-back", que Douchet chamou da metamorfose de Yang Kwei-Fei, e que vai do seu solitário concerto e da solitária viuvez do imperador à visão de Yang como gata borralheira (cantando na cozinha, numa sequência que terá eco no terceiro "flash-back", num filme quase todo construído, também, sobre o número dois e pares de sequências) e ao plano do general para se servir dela. Um "flash-back" que termina quando Yang entra no convento, onde a severa abadessa a educará para futura imperatriz."
Até Terça-Feira!
Yoshikata Yoda, que nos tem acompanhado na descoberta de Mizoguchi, escreveu nas Souvenirs que "na primavera de 1955, Mizoguchi realizou Yokihi (A Imperatriz Yang Kwei-Fei) em co-produção sino-japonesa. O projecto tinha-nos sido proposto por Run Run Shaw de Hong Kong. Redigi o argumento com Tsuji Kyuichi e Masashige Narusawa. Era a primeira vez que fazíamos um filme inspirado na história da China. Mas se Mizoguchi era um grande admirador de objectos de arte e um conhecedor da estética e dos costumes da época chinesa Tang, eu, pelo contrário, era completamente ignorante. Mizoguchi levou-me várias vezes a visitar museus, templos. Aprendi assim como a nossa civilização da era Nara tinha sido influenciada pela da era Tang. Eu fiquei chocado e deslumbrado com a civilização desta época chinesa que estudava por meio de todos os documentos disponíveis: Lamento do Longo Sofrimento, poema de Po Chu-Yi, ou Balada do Alaúde, poema de Du Fu, que contam os amores célebres do imperador Wei-Song e de Yang Kwei-Fei: a Revolta de An-Lou-Shan; o significado histórico da Rota da Seda, da Zona do Oeste: a civilização dos Igres; o papel dos eunucos, dos haréns; as festas, os costumes chineses, etc. Mas tive muitas dificuldades. No argumento inicial, para pôr bem em relevo o carácter fundamentalmente intrigante de Yang Kwei-Fei, queria insistir pelo menos em dois pontos (que são de qualquer forma historicamente autênticos): 1) Ao princípio, Yang Kwei-Fei era a mulher legítima do príncipe Tch'iu, filho do imperador Wei-Song. Mais tarde é promovida ao posto de imperatriz. 2) Chegada a imperatriz, Yang Kwei-Fei deixa de dissimular: o orgulho e o egoísmo dela são exibidos em plena luz do dia. Mas não tivemos estes elementos em conta, em primeiro lugar para simplificar a intriga, e sobretudo para fazer de Yang Kwei-Fei uma «heroína»; fizemos dela uma mulher pura e ingénua que a sua comitiva explorava por interesse. Isso levou-me a um esquema melodramático. De repente senti-me muito longe do argumento. Foi o senhor Kawaguchi quem fez a redacção definitiva. Yôkihi foi o primeiro filme a cores de Mizoguchi. Acredito que ele tenha estudado as cores dos templos e dos objetos de arte de Quioto para encontrar a cor exacta do seu filme. Depois de Yôkihi, Mizoguchi realizou Shin Heike Monogatari (O Herói Sacrílego, 1955), a partir da primeira parte do romance «best-seller» de Eiji Yoshikawa. Foi o segundo filme dele a cores, mas Mizoguchi não atribuía assim tanta importância aos problemas da cor. Foi a Companhia que lhe impôs a rodagem a cores. (Os dois filmes foram rodados em «Daieicolor».) A qualidade da cor ainda era medíocre. Mizoguchi considerava a cor no cinema um elemento artificial."
No prefácio à tradução francesa do livro de Yoda, Jean Douchet escreve que "Mizoguchi sempre teve um problema com o potencial melodramático das situações que põe em cena. Enquanto não consegue reduzir o melodramático, sem necessariamente o fazer desaparecer e mantendo toda a sua força emocional, enquanto não consegue controlar o realismo e o naturalismo que lhe servem como roupa, não está à vontade. A partir de 1950, ele consegue superar essa dificuldade, e é então a série das obras-primas em que não existe impureza nenhuma, equilíbrio perfeito entre a preocupação pela realidade e o carácter emocional do melodrama, com essas possibilidades de exageração que não abandona, ousando às vezes abordar situações excessivas próximas da inspiração de Abel Gance ou de King Vidor, mais insistentes que as dos filmes de John Ford. Le Destin de Madame Yuki, portanto, que inaugura a série das obras-primas: a ideia dessa mulher apaixonada sexualmente por um marido que despreza soberanamente e que a repugna moralmente e socialmente, mas pelo qual é atraída fisicamente e de maneira irresistível, cria uma situação de uma violência assombrosa, de que Mizoguchi extrai todas as consequências, e primeiro as sociais. O que é prodigioso, é que uma vez que consegue dominar estas situações - que pede aos seus argumentistas para imaginar, não o querendo fazer ele próprio - Mizoguchi pode fazer quebrar todas as hipocrisias da sociedade. E é por aí que passa o discurso, não pela forma do combate, e é por isso que ele nunca será um militante da militância, o que as pessoas de esquerda lhe censuram, mas pela intensidade, a verdade do retrato que obriga a olhar como funciona o mundo. Se não pudesse dispor do material que constituem estas situações violentas e melodramáticas, Mizoguchi não conseguiria lá chegar. Chegou lá uma primeira vez nos dois filmes de 1936. Terá que esperar por 1950, e uma certa liberalização do que é político, para retomar a sua procura e a sua diligência. É a partir desse momento que se lhe vai colocar o problema da própria expressão desta situação. Conhece-se o exemplo célebre, a morte de Yang Kwei-Fei, cena para a qual levou três dias a encontrar a solução: quatro planos estúpidos, um vestido que se arrasta pelo chão, dois brincos que caem no solo, chinelos abandonados na terra, que qualquer fazedor de clips ou de publicidade poderia encontrar. E de repente estes planos carregam-se de uma intensidade e de uma violência emocional, revelando a revolta escondida da situação, o desinteresse sublime da mulher dedicada face à pequenez miseravelmente interessada do seu senhor e mestre. Mizoguchi leva-nos mesmo ao coração da ideia e da sua força afectiva. O pensamento, por um poder soberano de abstracção, transfigura estes quatro planos. A meu ver, é aí que se situa o seu génio: o facto de ir sempre ao fim da situação.
Na folha da Cinemateca sobre o filme, João Bénard da Costa escreveu que "Mizoguchi utilizou para este filme um processo que só havia usado antes em O'Haru: a construção em "flash-back". O filme começa com o imperador já velho (sabemos que é já um ex-imperador, que perdeu o trono e a quem vai ser retirada até a última morada) e só depois dessa introdução (presidida pela estátua de Yang Kwei-Fei, há muito morta) viveremos a vida do imperador, até, no final, voltarmos a ele, para a sua morte e para o seu reencontro, entre os mortos, com Yang. E repare-se como o décor muda da primeira para a última sequência: o que é ainda um apartamento imperial (no início) embora sem grandes sinais de opulência, volve-se em ruína no final. E quando o imperador cai morto aos pés da estátua, os seus chamamentos a Yokihi (nome japonês de Yang Kwei-Fei) são finalmente respondidos e ficam-se a ouvir, muito demoradamente, os risos deles, por fim reencontrados. É um final que pode ser comparado (salvaguardando todas as distâncias estilísticas) ao do The Ghost and Mrs. Muir de Mankiewicz, quando o fantasma de Rex Harrison vem buscar o fantasma de Gene Tierney. Só que, em Mizoguchi, tudo é ainda mais misterioso (se é possível) porque não há qualquer figuração. Yang veio buscar o amado, mas nem um nem outro estão na imagem. Mas a câmara avança como se eles avançassem também, como se os víssemos, e a imagem visual é substituída pela imagem auditiva, num colóquio sentimental póstumo e eterno. Num velho parque solitário e gélido, duas sombras se encontram como nos versos de Verlaine. E lembram-se. E lembram-nos. Passo ao "flash-back". E o prodígio da construção do filme consiste em, depois desse imponderável "travelling" através das sedas (ou melhor entre e sobre as sedas) que nos leva da velhice do imperador à sua juventude e de uma imperatriz morta a outra imperatriz morta ("adorador de mulheres defuntas" pode ser este definido) assistirmos a um "flash-back" aparentemente uno mas que se divide em três. Há o "flash-back", que Douchet chamou da metamorfose de Yang Kwei-Fei, e que vai do seu solitário concerto e da solitária viuvez do imperador à visão de Yang como gata borralheira (cantando na cozinha, numa sequência que terá eco no terceiro "flash-back", num filme quase todo construído, também, sobre o número dois e pares de sequências) e ao plano do general para se servir dela. Um "flash-back" que termina quando Yang entra no convento, onde a severa abadessa a educará para futura imperatriz."
Até Terça-Feira!
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