segunda-feira, 11 de junho de 2018

100ª sessão: dia 12 de Junho (Terça-Feira), às 21h30


Chegados à sessão número 100, veremos O Intendente Sansho de Kenji Mizoguchi, filme dos filmes pelo cineasta dos cineastas. Ainda que situado em tempos e lugares remotos, esta obra-prima descreve-nos a mais universal das histórias, entre grandes flagelos, grandes tristezas, embates com a consciência e com as alegrias possíveis, à beira de um mar pacificado. É já na Terça-Feira, na sala de cinema do Braga Shopping.

Em 1958, Jacques Rivette começava o seu conhecidíssimo texto sobre o cineasta, Mizoguchi vu d'ici, perguntando, "como falar de Mizoguchi sem cair numa de duas armadilhas: o jargão do especialista ou o do humanista? Os filmes dele dependem da tradição ou do espírito do No ou do Kabuki: é possível; mas depois quem nos vai ensinar o significado profundo dessas tradições? E não seria uma tentativa de explicar o desconhecido pelo que não se pode conhecer? A arte de Mizoguchi está, no entanto, fundamentada no exercício de um génio pessoal dentro dos limites de uma tradição dramática: disso não há dúvida. Mas se formos então abordá-lo em termos de civilização para, antes de tudo, nele reencontrar certos valores universais, conseguiremos avançar? Homens que são homens em todas as latitudes: isto podíamos prever. Mas a surpresa serve para nos instruir sobre nós próprios. 

"Estes filmes que, numa língua desconhecida, contam histórias totalmente estranhas aos nossos costumes ou hábitos – estes filmes, na verdade, falam uma língua familiar. Qual? A única que qualquer cineasta almeja: a da encenação. Os artistas modernos não descobriram os fetiches africanos convertendo-se à religião dos ídolos, mas deixando-se comover por estes objectos insólitos enquanto escultura. Se a música é um idioma universal, a encenação também o é: é esta língua, e não o japonês, que devemos aprender para compreender “o Mizoguchi”. Língua comum, mas levada aqui a um grau de pureza que o nosso cinema ocidental só excepcionalmente conheceu."

O principal argumentista de Mizoguchi, Yoshikata Yoda, no seu livro em forma de carta sobre o cineasta, Souvenirs de Kenji Mizoguchi, deteve-se sobre a preparação do filme da nossa próxima sessão, escrevendo que "antes de partir para a Europa, Mizoguchi tinha confiado a escrita do argumento de O Intendente Sansho a M. Fuji Yahiro. Este projecto surpreendeu-me bastante. O Intendente Sansho é uma novela de Mori Ogaï (grande escritor da era Meiji) cujos heróis são crianças. Ora Mizoguchi nunca tinha feito filmes cujas principais personagens fossem crianças. Ele não gostava nada de crianças. Detestava-as, mesmo. Nunca o vi a sorrir a uma criança. Seria por não ter nenhuma? Ele dizia-me frequentemente: «Não percas o teu tempo a cuidar dos teus filhos! Um artista não deve ter família, para poder realizar a sua obra!» Assim que voltou, Mizoguchi perguntou a M. Yahiro se o argumento estava acabado. Mizoguchi só pedia para rodar! A recompensa a Contos da Lua Vaga em Veneza tinha-lhe dado tanta energia como confiança: «Desta vez, não podemos fazer só uma coisa qualquer!», anunciou ele como uma ameaça à direcção da Produção. O argumento de Sansho Dayu que M. Yahiro tinha escrito era uma adaptação bem honrosa, muito fiel à novela original. Mas Mizoguchi atirou, como eu estava à espera: «O quê! Uma história de miúdos! Quero a mesma história, mas sem crianças! » M. Yahiro desistiu. «Yoda, confio-te essa tarefa.» 

"Como Kyoko Kagawa foi escolhida para o papel de Anju (a irmã) e Kisho Hanayagi para o papel de Zushio (o irmão), eu reconstruí a intriga em conformidade com a imagem que tinha feito dos actores. Assim, e contrariamente à novela de Ogai Mori, fiz de Anju a irmã mais nova de Zushio. O prólogo do Intendente Sansho é fiel à novela, mas o seguimento, em que Anju et Zushio são adultos - o que constitui a maior parte do filme - é quase integralmente da minha pena. Seguindo o hábito dele, Mizoguchi recomendou-me: «Começa por estudar a história da escravatura. Põe-te bem ao corrente da função social e económica da escravatura.» O conto de Ogai Mori é extremamente conciso, abstracto, os detalhes narrativos e descritivos estão só esboçados. O meu primeiro trabalho como adaptador foi portanto parafrasear, detalhar, concretizar o conteúdo e, mais particularmente, dar ao drama um enquadramento histórico. Por exemplo, na novela, a mãe de Anju e de Zushio parte em viagem com as suas crianças para reencontrar o seu marido, que tinha partido há já muito tempo para a prefeitura de Tsukushi. Mas porque é que o marido foi para lá? Porque é que já não estava de volta? A explicação não era dada. Mizoguchi queria que esse homem tivesse sido exilado devido ao seu desacordo com a política governamental: tinha provocado a cólera do Chefe de Estado que não admitia que um alto funcionário tivesse as suas ideias sobre a igualdade social, ideias revolucionárias, uma vez que este último queria defender a causa dos camponeses e dos escravos. Para ele, essa ideologia confundia-se com a sua fé religiosa. Assim, ao partir em viagem, ele deixa às suas crianças uma estátua muito rara de Buda... Nós pensámos que essa estátua simbolizaria a fé das personagens (Anju e Zushio têm a infelicidade de ser vendidos como escravos e esse infortúnio vai levá-los ao sentimento religioso e a uma reflexão social sobre a emancipação dos escravos), e que isso também seria uma ponte dramática (a mãe que fica cega reconhece Zushio ao tocar nesta estátua de ouro). Tentámos elevar esta fábula popular ao nível de um drama social, estudando este pré-feudalismo e o budismo da época (fim da era Heian). No filme, Zushio consegue libertar os escravos, mas a mãe dele continua cega (na novela, os olhos da mãe voltam-se a abrir graças ao poder milagroso da estátua que Zushio trazia). No filme, a cena do regresso de Zushio para a sua mãe negligenciada leva até ao sublime a aflição dos corações e das coisas. Mizoguchi não tinha a certeza se ia ser capaz de conseguir esta cena. Perguntou-se durante muito tempo se iria manter a cena em que a mãe reabre os seus olhos mortos sob o efeito mágico da estátua. Ao remover este incidente, fizemos de Intendente Sansho um filme triste e pessimista. Este filme foi apresentado no Festival de Veneza de 1955 e ganhou o Leão de Prata."

No Dicionário do Cinema, Lourcelles escreve que Intendente Sansho é "uma das obras-primas capitais do último período de Mizoguchi. De uma forma minoritária na sua obra, eis um filme mais masculino que feminino pelo seu tema e pelas suas personagens; e a opressão que ele retrata toca tanto os homens como as mulheres, as crianças como os adultos. Através dos infortúnios de Tamaki, de Zushio e de Anju, Mizoguchi quis descrever o despontar dos valores morais numa época em que eles ainda não são valores objectivos mas apenas a inclinação de alguns (ex. o pai de Zushio). Como nos seus outros filmes, o esplendor plástico de cada plano ajuda Mizoguchi, bem como o argumento ou a interpretação dos actores, a dar à história contada a intensidade e a universalidade que procura. Bruscos, movimentados, quase caóticos nas primeiras sequências (que contêm breves flash-backs, raríssimos no autor), a decupagem e o estilo de Mizoguchi acalmam-se a pouco e pouco e reconquistam essa serenidade genial que lhes é característica, à medida que o herói (Zushio) experiencia a crueldade do mundo e do sistema político que a perpetua, e também à medida que reflecte sobre ela e passa da passividade à combatividade. A última cena (reencontro da mãe com o seu filho) é uma das mais belas da obra de Mizoguchi pela sua capacidade de conseguir uma emoção avassaladora a partir da serenidade perfeita do estilo, que parece reconciliado com o universo inteiro."

BIBLIO: argumento e diálogos in « L’Avant-Scène » nº 227 (1979). 

Até amanhã!

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