sexta-feira, 22 de junho de 2018

Chikamatsu monogatari (1954) de Kenji Mizoguchi



por João Palhares

O que podia ser só uma comédia de enganos, como bem lembrou João Bénard da Costa[1], com trocas de identidades e confrontações que dão para o torto, portas de correr que se abrem e se fecham como num filme de Lubitsch, lutas de poder entre maridos e mulheres ou entre funcionários que querem subir de posto, transforma-se numa trágica história de amor pelas leis que regulavam que uma mulher não podia trair o marido enquanto este podia ter todas as concubinas que quisesse, no Japão do século XVII. A pena era a crucificação e Chikamatsu Monzaemon, autor da peça que inspirou o filme de Mizoguchi que vamos ver hoje e tido como o maior dos dramaturgos japoneses, assistiu a muitas delas durante a sua vida, entre os anos de 1653 e 1725. A serenidade e o amor inversamente proporcionais ao percurso cruel e injusto que os amantes crucificados, Osan e Mohei, têm de fazer, além de estar envolto num profundo mistério (descrito por Mizoguchi e aceite por nós como única alternativa para os amantes e apesar das múltiplas saídas que lhes são oferecidas pelo marido de Osan e pelas famílias dela e de Mohei), talvez se relacione muito com a cultura oriental, mas não faltam exemplos de percursos semelhantes no chamado “cânone ocidental”[2]. O amor e a morte, duas pessoas que mal se conhecem são atiradas aos braços uma da outra pelo destino. Quando estão prontas para acabar com a vida, nas águas da morte de Kenji Mizoguchi (as mesmas que engoliram Anju[3] ou separaram Genjūrō da mulher e do filho[4]), são resgatadas pelo amor e nunca mais se esquecerão disso, até às últimas consequências, até conhecidos seus verem neles uma “alegria” e uma “serenidade” que nunca tinham visto antes e eles próprios talvez nunca tenham conhecido. O amor e a morte unidos por poemas milenares e fundadores que falam de reinos não terrenos em que os amores interrompidos, impossíveis ou frustrados são finalmente consumados, no mundo dos sonhos ou nos limiares da realidade, em noites de outono supostamente grandes mas que não chegam para abarcar as noites emotivas e transcendentes de quem se ama, apelos à lua e ao sol, às montanhas e aos rios, lamentos e sussurros de mil anos[5]. O amor e a morte nos encontros de Genjūrō com dois fantasmas no outro lado da vida, uma nobre morta que o faz esquecer a vida terrena e a mulher assassinada que lhe ensina que a vida e a morte estão no mesmo plano das coisas, como a luz e a escuridão, o sol e a lua, a regra e a excepção. Há-de velar por ele nas correntezas dos rios, nos ramos das árvores, no topo de montanhas ou no azul do céu como anjo livre, expiada pelos sofrimentos passados[6]. Não há religião mais bela na sua acepção do que o budismo, ter a certeza que continuamos todos vivos não dentro dos outros mas na essência e no alcance de toda a criação. Não há filmes mais belos que os de Mizoguchi, que nos dêem a ver tantas coisas sem que um fluxo de continuidade lógica se quebre ou se interrompa, continuidade inventada fora das regras tradicionais e que tantos problemas deu ao seu criador para ser implementada, mas na qual é até possível ver o tempo e o movimento cessarem com um travelling para serem retomados com um plano fixo. Se não acreditam, vejam os planos finais deste filme, quando os amantes são levados para a cruz e para a consumação do seu amor e a multidão os acompanha e vai comentando o seu destino, vejam a confrontação final das mulheres que foram obrigadas a viver da rua e da noite e a suportar a crueldade dos homens num arrabalde perdido e em ruínas[7]: a câmara segue alguém e anula todo o movimento indo à mesma velocidade que os seus passos, enfeitiçada e em levitações etéreas, quando há um corte e tudo se mexe, tentando impedir a entrada de alguém nas terras de sonho que cria a esperança pelos portais do sofrimento. Milagres.

[1] na folha da Cinemateca sobre Os Amantes Crucificados
[2] da Bíblia Sagrada ao Romeu e Julieta
[3] no Intendente Sansho
[4] nos Contos da Lua Vaga
[5] no Kokin Wakashū, antologia imperial de poesia waka publicada no século X. 
[6] os Contos, mais uma vez. 
[7] nas Mulheres da Noite, de 1948. 

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