sexta-feira, 29 de junho de 2018

Yōkihi (1955) de Kenji Mizoguchi



por João Palhares

Como vimos a semana passada[1], o amor em Mizoguchi pode surgir da mais insólita das formas, tornando verdade uma mentira, complicando e muito a vida de quem se ama mas transformando também a morte em vida e o desespero em esperança; ou através de esquemas numa corte sedenta de poder, pelos mais mesquinhos e egoístas dos sentimentos ou dos esquemas, pelo uso de uma familiar para subir de posto e conquistar mais poder. É ao confessar o seu papel como joguete político da sua família que a jovem Yang conquista os afectos do imperador Xuan Zong, pouco habituado a que sejam sinceros consigo. E é por amor por ele que tenta renunciar à sua vida de imperatriz, quando vê a sua família a tentar usurpar o poder e a antagonizar o povo, gastando os seus tributos sem qualquer controlo. Tudo isto[2] se passa na China, mas não será absurdo pensar no Japão que já vimos nas últimas duas semanas ou nas aventuras de Genjūrō no outro mundo[3], a música e os chamamentos terrenos e não terrenos por amantes ou crianças perdidas, o corpo da mulher como moeda de troca para garantir os objectivos dos homens, da obra de Mizoguchi ao conto fundador de Guy de Maupassant[4] que nos fala de uma mulher que tem de passar pelo pior para que os companheiros de viagem prossigam e sobrevivam, dando as maiores mostras de generosidade apenas para receber em troca o desprezo e a altivez dos companheiros. Pensamos nisto tudo enquanto a câmara de Mizoguchi se passeia aristocraticamente por cozinhas escuras ou aposentos reais, campos lamacentos ou jardins bem cuidados e floridos, festas populares ou saraus privados, salas conspiratórias ou reuniões na corte, campos de batalha ou árvores da forca, dando conta do mero acaso que pode separar uma vida precária e desfeita do privilégio e das honrarias do trono, uma questão de nascimento e genealogia, uma questão de avareza e hipocrisia, um acidente de percurso que pode dar mais azares que benesses. Só a imperatriz se apercebe do andamento da história e só a imperatriz sabe o que deve ser feito, da altura em que a sua vida ainda pode ser poupada ao momento em que até o imperador é ameaçado pelos seus soldados, aceitando o seu destino com uma serenidade desarmante e que nos poderá fazer suspeitar que era ela a única que merecia ser poupada naquele manto de esquemas e de imbecilidade, "quatro planos estúpidos, um vestido que se arrasta pelo chão, dois brincos que caem no solo, chinelos abandonados na terra, que qualquer fazedor de clips ou de publicidade poderia encontrar. E de repente estes planos carregam-se de uma intensidade e de uma violência emocional, revelando a revolta escondida da situação, o desinteresse sublime da mulher dedicada face à pequenez miseravelmente interessada do seu senhor e mestre.[5]" Se é isso, o diálogo além-túmulo pode ser só um devaneio desesperado do imperador moribundo, que sempre pareceu gostar mais de mulheres mortas do que vivas. Senão, é a consumação do amor do líder arruinado e da sua amada imperatriz, que reinarão nos céus para sempre e sem as intrigas políticas terrenas. A cada um a sua opinião e o seu cenário possível ou impossível. 

[1] nos Amantes Crucificados.
[2] A Imperatriz Yang Kwei Fei.
[3] nos Contos da Lua Vaga.
[4] Boule de Suif, 1880, que além de ter dado origem a Maria no Oyuki de Kenji Mizoguchi, também terá inspirado o Stagecoach de John Ford, bem como filmes de Henry King, Josef von Sternberg, Robert Wise ou William Dieterle.  
[5] Jean Douchet, no prefácio às Souvenirs de Yoshikata Yoda. 

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