quarta-feira, 13 de junho de 2018

Sanshō Dayū (1954) de Kenji Mizoguchi



por João Palhares

Anos 10 do século passado. Um jovem de 17 anos percorre as ruas de Tóquio sem planos de vida depois de regressar de Nagoya. Podem nevar esses flocos de neve que levitam no ar e colorem as ruas ou chover essas gotas de chuva que nos disfarçam as lágrimas, estendendo e espelhando ao mesmo tempo a tristeza de cá de dentro, purgada pelos fios de água que correm pelas ruas como quando se choram as pedras da calçada. Um incidente ou um atraso urbano qualquer fá-lo pensar no passado e na família. A mãe morreu há pouquíssimo tempo e a irmã, que ganha o dinheiro dela num bordel, tem-no sustentado e apoiado entre estudos e buscas por trabalho. Do pai, “homem de Tóquio que se alimentava de grandes sonhos e falhava constantemente”[1], não quer saber. Tinha apanhado o comboio para Nagoya para voltar outra vez a Tóquio, tinha desperdiçado o dinheiro da irmã porque não queria ser comerciante e não se decidia entre o peso da culpa e a volatilidade dos sonhos. É noutras cidades que vai arranjando trabalhos, que não duram porque parece ser sempre empurrado para a capital. Revoluções russas, revoltas do arroz... é muita confusão para quem não sente grande coisa nem por quem oprime nem por quem se revolta. Sempre foi possível não estar em lado nenhum quando as coisas aconteciam, passar conscientemente ao largo de tudo o que possa e acabe por “fazer história” – pensar que essa história é doutros e não nossa. Imaginar quantos heróis não foram cantados, quantas pessoas foram obrigadas a sofrer e a martirizar-se em silêncio para que outros pudessem receber os louros e viver as venturas da virtude. “Tudo o que é interessante passa-se na sombra”[2]. Uma mulher salva um homem do suicídio e abriga-o no único sítio que consegue, a casa de mercenários que traficam obras de arte ou objectos sagrados e que acabam por fazer da vida deles um inferno. Até se conseguirem evadir, denunciando com muita cautela o último golpe planeado pelos traficantes à polícia, vão levar no corpo, vão sofrer juntos e vão aguentar porque se amam, sarar as feridas entre chibatadas, castigos e humilhações. Cá fora, na cidade, o mundo não os trata muito melhor e ela acaba por aceitar a proposta da vizinha a quem pede comida, tornando-se uma gueixa para sustentar os estudos dele e sem lhe dizer nada. Arranja problemas com a polícia e é detida à frente dele, despedindo-se a soprar um pássaro de papel na sua direcção. Esse sopro de vida transforma-se em vento eterno ou sem tempo e os anos passam. É a vez dele a ajudar, mas já vem tarde demais, os suplícios cobraram a sua dívida. A chuva corre pelos nossos olhos, ou choramos outra vez[3]. “Sem misericórdia, o homem é como os animais. Mesmo que sejas duro contigo mesmo, sê piedoso com os outros. Os homens são todos iguais e toda a gente tem direito à felicidade.”[4] É a última coisa que um miúdo ouve do pai antes de se separar dele, sem saber que é para sempre. A mãe leva-o a ele e à irmã para passar uns anos em casa de familiares até se juntarem todos ao pai, que tinha sido condenado ao exílio. A caminho são feitos reféns da vida, que parece não ter por eles a misericórdia que merecem. São também separados. Anos e anos numa elipse violenta, como quando se tenta viver o instante e nos pesa uma lembrança dorida – o instante vai-se e a lembrança fica. O miúdo é já um homem e esqueceu-se de tudo, mas a irmã não. As palavras do pai resistem e chegam-lhes outras palavras, em forma de canções, de uma ilha remota – é a mãe. A fuga é possível mas só com um sacrifício, para dentro de águas que também lavam lágrimas. A irmã mata-se, o pai morre, mãe e filho encontram-se quase tarde demais no que podia bem ser o fim do mundo, do Cabo da Roca ao Big Sur. “Restamos apenas nós dois”[5], diz o filho à mãe, num momento de reconciliação cósmica que atravessa todos os lugares e todos os tempos como um leve lampejo. O jovem de 17 anos, na tal noite chuvosa, não sabia que se ia tornar no maior dos cineastas, contar-nos estórias que nos hão-de sobreviver por séculos, deixar-nos atónitos e sem capacidade para escrever sobre planos e luzes por termos visto as coisas com os olhos totalmente embaciados com lágrimas. Ele ainda havia de deambular pela cidade de Tóquio por mais uns anos, absorver o que se passava em redor, até arranjar trabalho na Nikkatsu, o mítico estúdio de cinema japonês. Faria perto de uma centena de filmes, dos quais só alguns nos chegaram, constantemente insatisfeito com o resultado e tentando alcançar uma certa nota, uma certa ideia, que não sabia descrever mas da qual se aproximava recusando as alternativas. Essas notas podiam ser noites de travessia pelo rio entre as brumas; aparições de mortos quando são mais precisos, com a promessa de velar sempre pelos vivos; pedaços de pólen a voar à volta de fugitivos, neve e lagos mágicos, a natureza em todo o seu esplendor e sempre inconsciente ou abstraída dos destinos dos homens; um plano enorme e muito difícil de suportar num corredor de um bordel ou na costa da ilha de Sado, em que tudo acaba por confluir, como na foz de um rio. É isto a “arte da modulação”?[6]

[1] in «Souvenirs de Kenji Mizoguchi», de Yoshikata Yoda, Petite bibliothèque des Cahiers du cinéma, 1997. 
[2] in «Voyage au bout de la nuit», de Louis-Ferdinand Céline, 1932. 
[3] in Orizuru Osen, de Kenji Mizoguhi, 1935. 
[4] in Sanshō Dayū, de Kenji Mizoguchi, 1954. 
[5] ibidem.  
[6] in « Mizoguchi vu d’ici», Jacques Rivette, 1958.

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