Continuando o nosso pequeno ciclo dedicado ao grande Kenji Mizoguchi (ou Mizo-San, como lhe chamava Yoshikata Yoda), chegamos aos Amantes Crucificados, outro portento dramático e trágico ao qual poucas palavras poderão fazer justiça e que vai ser a nossa próxima sessão, ainda nas salas de cinema do Braga Shopping.
Na folha da Cinemateca sobre o filme, João Bénard da Costa escreveu que "na tradição ocidental, bimilenária, a Cruz é o símbolo da Paixão. Paixão de Deus pela Humanidade. E a palavra atinge, nessa dimensão, o seu pleno significado etimológico (de passio = sofrer, como se sabe) e, o seu pleno significado metafórico e corrente, na associação à "loucura do Amor". Por esse Amor Louco por todos nós, humanos, morreu Cristo, Filho de Deus Vivo, na Cruz.
"Antes de Cristo, no mundo romano, a cruz era o suplício dos escravos transgressores. Morrendo na Cruz, Cristo aceitou essa dupla condição: a de escravo e a de transgressor. Morreu como o último dos homens por ter transgredido a Lei do seu povo.
"No nosso imaginário, a associação à Cruz (ou as associações com a Cruz) são tão fortes (seja-se ou não se seja crente) que tendemos a esquecer que o suplício não é invenção ocidental, nem universalmente se reveste dessa carga sagrada. Na tradição oriental, como nos recorda Mizoguchi ou o texto setecentista que adapta, morriam na cruz outros transgressores: os amantes adúlteros."
Yoshikata Yoda, nas suas Souvenirs, depois de descrever uma discussão acesa entre Mizoguchi e Kyuichi Tsuji, co-argumentista de Amantes Crucificados, confessa que "Tsuji, extenuado, quis abandonar tudo, mas como eu conhecia os modos de Mizo-san, tentei acalmar o descontentamento do meu co-argumentista para podermos regressar ao trabalho. Desta vez, concentrei-me no retrato do herói (Moemon). Estava muito contente com o meu argumento. O presidente da Daiei também o achou muito bom. Só Mizoguchi é que parecia não estar contente: «Falta-lhe intensidade dramática!» Isso desmoraliza-me completamente. « O que é que isso quer dizer?», perguntou o presidente a Mizosughi, como que para me defender. «Pois bem, por exemplo», respondeu Mizoguchi, «Osan e Moemon fazem amor num quarto de hotel depois de terem decidido cometer suicídio. É idiota, é ridículo. Se eles decidiram morrer, é impensável que pensem em fazer amor! Eles apanham um pequeno barco apenas com o propósito de morrer. E isso é suficiente para mostrar o estado de alma deles nesse momento. Estão agora a meio do lago. E de repente, já não querem morrer. Não é que tenham medo da morte. Mas ao contrário dos melodramas em que os parcos instantes roubados à morte são os mais doces que a vida já permitiu, a extinta tentação da morte dá aos momentos futuros a recompensa da existência, é uma verdadeira abertura. Não se pode morrer assim, pensam os amantes mesmo antes do suicídio. É assim. E é verdadeiramente dramático.»
"O argumento definitivo dos Amantes Crucificados concluiu-se assim depois de várias versões. A rodagem começou, mas durante a rodagem, Mizoguchi teve muitas dificuldades em lidar com o actor Kazuo Hasegawa, que se deliciava a criticar a mise en scène do autor. Mas fomos bem recompensados pelos nossos esforços todos, porque este filme acabou por se revelar uma obra-prima de pureza e nobreza."
No Dictionnaire du Cinéma, Jacques Lourcelles fala do "feudalismo descrito por Mizoguchi: um universo onde cada um tem o seu lugar fixado na hierarquia dos deveres e do respeito, onde cada acto que se cumpra ocorre diante do mundo, onde a ordem assim estabelecida tende a eliminar toda a vida privada e toda a liberdade. Mas esta volta a aparecer no amor e no jogo imprevisto das paixões. É uma liberdade trágica que recria deveres e um respeito entre os amantes que tornam irrisórios os que são determinados pela ordem social. No plano estético, tal universo convém de forma ideal a Mizoguchi. Para ele, o ser das personagens só pode existir na intensidade e na tragédia. Cada gesto, cada entoação e cada sentimento dos dois heróis surge num presente que é a eternidade e onde o anedótico, o superficial e o frívolo não podem ter lugar. Intensamente felizes e infelizes, os "amantes crucificados" transgridem as leis de seu universo social e estão para além de qualquer julgamento. Aparecem-nos como os únicos seres vivos verdadeiros do filme e, a este título, exercem fascinação tanto sobre as outras personagens como sobre o espectador. A arte, a certeza (dir-se-ia que toda a deselegância lhe é desconhecida) e a determinação tranquila com que Mizoguchi implementa esta fascinação nos enquadramentos, no grão da fotografia ou na representação dos intérpretes fazem dele, pelo menos no seu último período, o cineasta por excelência; uma espécie de igual e de contemporâneo na eternidade de um Goethe ou de um Shakespeare, aos quais aliás o material literário aqui utilizado podia ser comparado."
Até Terça!
Na folha da Cinemateca sobre o filme, João Bénard da Costa escreveu que "na tradição ocidental, bimilenária, a Cruz é o símbolo da Paixão. Paixão de Deus pela Humanidade. E a palavra atinge, nessa dimensão, o seu pleno significado etimológico (de passio = sofrer, como se sabe) e, o seu pleno significado metafórico e corrente, na associação à "loucura do Amor". Por esse Amor Louco por todos nós, humanos, morreu Cristo, Filho de Deus Vivo, na Cruz.
"Antes de Cristo, no mundo romano, a cruz era o suplício dos escravos transgressores. Morrendo na Cruz, Cristo aceitou essa dupla condição: a de escravo e a de transgressor. Morreu como o último dos homens por ter transgredido a Lei do seu povo.
"No nosso imaginário, a associação à Cruz (ou as associações com a Cruz) são tão fortes (seja-se ou não se seja crente) que tendemos a esquecer que o suplício não é invenção ocidental, nem universalmente se reveste dessa carga sagrada. Na tradição oriental, como nos recorda Mizoguchi ou o texto setecentista que adapta, morriam na cruz outros transgressores: os amantes adúlteros."
Yoshikata Yoda, nas suas Souvenirs, depois de descrever uma discussão acesa entre Mizoguchi e Kyuichi Tsuji, co-argumentista de Amantes Crucificados, confessa que "Tsuji, extenuado, quis abandonar tudo, mas como eu conhecia os modos de Mizo-san, tentei acalmar o descontentamento do meu co-argumentista para podermos regressar ao trabalho. Desta vez, concentrei-me no retrato do herói (Moemon). Estava muito contente com o meu argumento. O presidente da Daiei também o achou muito bom. Só Mizoguchi é que parecia não estar contente: «Falta-lhe intensidade dramática!» Isso desmoraliza-me completamente. « O que é que isso quer dizer?», perguntou o presidente a Mizosughi, como que para me defender. «Pois bem, por exemplo», respondeu Mizoguchi, «Osan e Moemon fazem amor num quarto de hotel depois de terem decidido cometer suicídio. É idiota, é ridículo. Se eles decidiram morrer, é impensável que pensem em fazer amor! Eles apanham um pequeno barco apenas com o propósito de morrer. E isso é suficiente para mostrar o estado de alma deles nesse momento. Estão agora a meio do lago. E de repente, já não querem morrer. Não é que tenham medo da morte. Mas ao contrário dos melodramas em que os parcos instantes roubados à morte são os mais doces que a vida já permitiu, a extinta tentação da morte dá aos momentos futuros a recompensa da existência, é uma verdadeira abertura. Não se pode morrer assim, pensam os amantes mesmo antes do suicídio. É assim. E é verdadeiramente dramático.»
"O argumento definitivo dos Amantes Crucificados concluiu-se assim depois de várias versões. A rodagem começou, mas durante a rodagem, Mizoguchi teve muitas dificuldades em lidar com o actor Kazuo Hasegawa, que se deliciava a criticar a mise en scène do autor. Mas fomos bem recompensados pelos nossos esforços todos, porque este filme acabou por se revelar uma obra-prima de pureza e nobreza."
No Dictionnaire du Cinéma, Jacques Lourcelles fala do "feudalismo descrito por Mizoguchi: um universo onde cada um tem o seu lugar fixado na hierarquia dos deveres e do respeito, onde cada acto que se cumpra ocorre diante do mundo, onde a ordem assim estabelecida tende a eliminar toda a vida privada e toda a liberdade. Mas esta volta a aparecer no amor e no jogo imprevisto das paixões. É uma liberdade trágica que recria deveres e um respeito entre os amantes que tornam irrisórios os que são determinados pela ordem social. No plano estético, tal universo convém de forma ideal a Mizoguchi. Para ele, o ser das personagens só pode existir na intensidade e na tragédia. Cada gesto, cada entoação e cada sentimento dos dois heróis surge num presente que é a eternidade e onde o anedótico, o superficial e o frívolo não podem ter lugar. Intensamente felizes e infelizes, os "amantes crucificados" transgridem as leis de seu universo social e estão para além de qualquer julgamento. Aparecem-nos como os únicos seres vivos verdadeiros do filme e, a este título, exercem fascinação tanto sobre as outras personagens como sobre o espectador. A arte, a certeza (dir-se-ia que toda a deselegância lhe é desconhecida) e a determinação tranquila com que Mizoguchi implementa esta fascinação nos enquadramentos, no grão da fotografia ou na representação dos intérpretes fazem dele, pelo menos no seu último período, o cineasta por excelência; uma espécie de igual e de contemporâneo na eternidade de um Goethe ou de um Shakespeare, aos quais aliás o material literário aqui utilizado podia ser comparado."
Até Terça!
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