por João Bénard da Costa
Porque me chamaste?
Eu não é eu que te responda.
Swedenborg
Persona é a obra-prima de Bergman. Digo-o desde já, para ir direito ao que importa.
Em nenhum outro dos seus filmes – sejam quais forem as subjectividades e as preferências – o cineasta conseguiu atingir tal grau de simplicidade e de complexidade e conseguiu dizer tanto com tão pouco. Todo o Bergman está nele, nele está todo o Bergman. Estamos perante um exemplo de acabada perfeição. Tudo o que ficou para trás – e, meu Deus, tanto é – foi prelúdio. Tudo o que se lhe seguiu – e, meu Deus, que enormes filmes são – foi coda, ou postfácio. Ficasse só este filme, de Bergman saberíamos tudo.
Por isso me irritam – não de viam irritar, mas irritam – as minuciosas exegeses que, plano a plano, passo a passo, esclarecem – ou obscurecem – o sentido de cada imagem. Podem escrever-se ensaios densíssimos e luminosíssimos que dão a cada plano cada chave e os comentam em textos que demoram a ler muito mais do que os 80 minutos do filme. Pode continuar-se a “psicanalisar” ad infinitum as relações de Johan (é o nome do miúdo) com a mãe, da mãe com Alma, da mãe com o marido, de Bergman com todos eles e com a própria mãe (que morreu no ano de Persona, em Março de 1966). Teremos óptimas conversas de salão, mas não teremos a experiência de ser, pela primeira vez, confrontados com Persona. Confrontados com quem? Com uma pessoa (uma máscara, que dizem os eruditos que é a raiz do que somos) que um dia, num palco, emudeceu e nunca mais voltou a falar.
Quem é? Uma actriz, uma actriz chamada Elisabet Vogler. Era suficientemente célebre para que o comum dos mortais a tivesse visto e admirado em palcos e em filmes. Mas, um dia calou-se. Estava a representar a Electra (vemo-la, de Electra vestida, várias vezes durante o filme). E, quando suplicava o perdão de Orestes («E Vós, Divindades, Vós que, algures, nas trevas exteriores que a todos nos cercam, nos estais escutando, tende piedade de mim. Vós que sois o Amor»), subitamente deu uma gargalhada. Depois, calou-se. Depois, foi internada num hospital. Nunca mais se moveu, nunca mais falou. A certa altura do filme, recomeça a andar mas continuará sem falar até ao fim. Julgamos – e julga Alma, a enfermeira que lhe designaram – ouvi-la uma vez ou outra. Mas ninguém está certo disso. Ninguém está certo (podem jurá-lo) que, perto do fim, tenha repetido «Nada» como Alma lhe pediu. Parece – é a única vez que parece, é a única vez que a voz não parece ser a de Bibi Andersson – mas já todas as alucinações são possíveis, para ela (Bibi Andersson) como para nós. E, no fim, a actriz Elisabet Vogler está tão imóvel e tão calada quanto o estivera no começo, de novo na cama do hospital. O que se passa é um filme, como o que se passara no início, um filme rodado por Ingmar Bergman (a ele o vemos), com Sven Nykvist à câmara (também o vemos). O ruído – inicial como final – é o da máquina de projectar. 24 imagens por segundo.
Sonhámos tudo isso, ou foi Bergman quem o sonhou? Essa é a questão de Persona e a todos nos envolve, já que não consta que se deixem entrar bichos na sala. Quem é eu aqui? O realizador, figurado e figurável, filmado e filmável, presente no princípio como no fim? O filme que corre na sala, mas também corre nos carretos, em eco do próprio ruído de, assim, desfilar? Elisabet Vogler, a actriz? Alma, a enfermeira? O miúdo, que do lado de cá do vidro, não toca na imagem (desfocada e ofuscante) que está para além dele? Ou todos são um só, como parecem querer ser e parecem não querer ser? Existem várias personagens nesta “história”, ou só existe uma, Alma-Elisabet chamada, com outro olhar a vê-la, olhar nosso, olhar do realizador? Como sabê-lo? Juramos que são duas – o genérico confirma-o e dá-lhes por nomes Liv Ullmann e Bibi Andersson – mas também podemos jurar que num plano – num célebre plano – as vimos serem uma só, apenas por uma reminiscência desmontáveis (e dizemos então que metade do rosto era Liv Ullmann e metade do rosto era Bibi Andersson). Literalmente há vertigens dessas, como por exemplo naquela novela de Camilo (agora não recordo qual) em que ele escreve Fulano de tal (não é fulano de tal, tem um nome bem prosaico, mas não me lembro), Fulano de tal é eu. A frase choca e perturba. Mas, gramaticalmente, está certa. Questão de sujeito e nome predicativo de sujeito. «Sou eu», mais usual e mais banal, também dava. Mas não é a mesma coisa. E aí começamos a vacilar.
No filme – neste filme – demoramos muito mais tempo nessa vacilação. É verdade que o pré-genérico é estranhíssimo (já se lhe chamou, e com razão, o mais estranho pré-genérico da história do cinema, com um sinal por segundo e todos singularmente perplexivos) mas também é verdade que quando acaba o ruído da máquina tudo parece reentrar na lógica de um filme. Uma psiquiatra conta-nos (conta à enfermeira) uma história coerente e lógica sobre uma doente de que ela se deve ocupar. É um caso difícil, a enfermeira tem 25 anos e não sabe se está preparada, vamos lá ver, vai-se ver. E a enfermeira é totalmente enfermeira (impecavelmente profissional) e a doente totalmente doente (doente, como a psiquiatra a descrevera). Uma e outra, nos são simpáticas. Alma (é melhor chamar-lhe assim) é meiga, discreta, eficiente. Elisabet (a actriz) também o é. Mas quando Alma diz (falando de Elisabet) que ela tem um rosto de criança, mas uma expressão dura, se lhe repararmos bem nos olhos, só lhe damos inteira razão se já estamos todos projectados (ou debruçados). É verdade para Elisabet, mas também é verdade para Alma. Só que nessa altura do filme os grandes planos de Elisabet (e nunca tão tristes vistes) são muito mais numerosos do que os de Alma. Se, mais tarde, pensarmos na frase, achamos que tanto vale para uma como para outra. Foi tudo tempo de as olhar nos olhos. E, apesar das aparências, é raríssimo olhar-se nos olhos uma pessoa. Raríssimo e dificílimo. Acontece, às vezes, nas praias, ao sol, quando nos deitamos lado a lado, e abrimos um olho para olhar o olhar do outro. Raras vezes acontece mais. Por isso é que, na vida, ao contrário do cinema, os grandes planos (inventados por este e não pela pintura) são tão raros. Bergman que inventou os grandes, grandes planos (contem-nos em Persona e não acreditarão no número) sabia disso e da nossa demora a chegar até eles. Por isso, a frase inicial de Alma pode parecer tão banal, tão objectiva, tão alheia. Um fait divers. Mas não é facto, nem é diverso. É filme e é uno. Mesmo que, depois dessa clínica verificação, depois da história da telefonia (e é pela telefonia que conhecemos o texto que citei da Electra), depois dos primeiros sons de Bach, já tenhamos visto – segundos? Eternidades? - aquele grande, grande plano de Liv Ullmann, deitada na cama, de lado, antes de adormecer, e antes que alguém (quem?) lhe ponha a mão em cima da cara. A seguir, acende-se uma luz, Bibi Andersson diz qualquer coisa como «bolas!» (tenho que me fiar nas legendas) porque se esqueceu de marcar o despertador. Vira-se para nós e diz que é cómico. E pergunta qual será o problema dela. Dela. Elisabet Vogler. Elisabet Vogler. A sequência seguinte (supostamente, o dia seguinte) é Elisabet sem Alma. Televisão, Vietname, coisas dos anos 60. A actriz deve ter problemas políticos – pensamos – como Max von Sydow na Luz de Inverno os tinha com os chineses. Mas também se fala de «forças que não podemos controlar». Bergman, tel qu'en lui-même... Já sabíamos. Como sabíamos (ou julgávamos saber) de histórias com o filho e com o marido, coisas de Édipo, coisas conjugais. Até que a voz off nos informa que foram as duas para a praia, para o mar.
O tom “realista” continua, com uma a fingir que não dá pelo silêncio da outra, e outra a fingir que não dá pelas conversas de uma. Mudam de cor (fatos de banho brancos, fatos de banho pretos), mudam de mãos, é tão bom ouvir, é tão bom falar. E como é tão bom, quem fala avança nas confidências e conta, conta, conta histórias íntimas e pessoais. Entretidos a ouvi-las (o que é que entretém mais do que a oralidade do sexo?) nem reparamos nas mudanças dos planos, e continuamos a tomar como fait divers que quem fala diga que deve ser bom ser-se duas pessoas numa só, alma cheia até rebentar.
Até que, de súbito, se ouve alguém dizer: «precisas de te ir deitar». «Preciso de me ir deitar» emenda Alma, logo a seguir. Só mudou o tu pelo eu. A voz é a mesma. Mas, enquanto chove, e enquanto se ouve a ronca na banda sonora, vacilamos, pela primeira vez, sobre a identidade de quem fala. E, durante a noite, as duas se fundem, pela primeira vez numa só, no beijo vampírico de Liv a Bibi. E amanhece.
Sonho, pensamos reconfortadamente (pensa-o também Alma). Mas a partir daí, já de nada estamos certos. Nem quanto à fabulosa aparição de Gunnar Björnstrand, dirigindo-se a uma como se fosse outra e a outra como se fosse uma, nem quanto à celebrada sequência (a mais célebre e a mais imitada de Persona) em que ouvimos o mesmo diálogo (o famoso diálogo sobre a maternidade) ora do ponto de vista de Elisabet, ora do ponto de vista de Alma. E quando digo «ponto de vista» digo muito mal, porque não há ponto de vista, há mesmo a total ausência de um e de outro (por isso os imitadores sempre se enganaram tanto).
Quem é que – à noite – fica com a cara flácida, inchada, quem é que cheira a sono e lágrimas? Quem agride quem? Quem agride quem? Quem ouve a declaração de amor conjugal? Quem é que é Elisabet Vogler e quem é que não é Elisabet Vogler? Quem é que repete o pedido de perdão de Electra a Orestes? A quem se dirige o cego? Duas pessoas podem volver-se numa só? E, sendo possível, a Alma e a Máscara (a Pessoa) podem continuar a dividir-se, como se divide a imagem do filme?
Persona é um mosaico que não faz sentido. Diante deste filme, sinto-me como o miúdo que por lá aparece, a tocar no vidro (na tela) e sem o transpor. Para lá dele (e dessa imensa imagem maternal e feminina, a imagem maternal e feminina) estará possivelmente o sentido de tudo, mas não se pode ir para lá de um filme, como não se pode atravessar uma tela, sem destruir a visão.
Como escreveu Pérec: «estamos sozinhos e não conhecemos ninguém. Não conhecemos ninguém, e estamos sozinhos».
«Meu Deus, se fosse possível partilhar tudo isto com alguém. Mas se o fosse, alguém o seria, alguém o seria ainda?». A pergunta é de Rilke, no Malte. A resposta de Elisabet, conjurada e esconjurada por Alma, não é não, nem é ninguém. É nada.
A génese deste filme – contou Bergman – começou no dia em que Bibi Andersson, casualmente, lhe apresentou uma desconhecida actriz norueguesa chamada Liv Ullmann. E ele reparou – «inconscientemente» – na «diabólica semelhança» entre aquelas duas mulheres, não quando as viu, mas quando viu uma fotografia delas, na praia, a tomar um banho de sol. Depois adoeceu, depois esteve três meses num hospital (doença de Ménière, perturbação do ouvido interno, que se manifesta, entre outros sintomas, por vertigens e perda de equilíbrio). Depois pensou que nunca mais voltava a filmar. Depois sentiu-se «vazio e morto». E, um dia, começou a pensar nessa fotografia e em duas mulheres, de fato de banho, a compararem as mãos. Depois, começou a escrever o script. Depois, parou. Achou que estava doido. Quando Bibi, desesperada com os primeiros ensaios, lhe disse o mesmo, começou a filmar. Liv estava nervosíssima. De repente, as duas caras misturaram-se uma na outra. «Foi o primeiro plano do filme. Quanto ao resto, podem interpretá-lo como quiserem. Como com um poema. Para pessoas diferentes, qualquer imagem significa coisas diferentes (…) Em Persona, como nas peças de Beckett, não há duas séries de imagens, como não há duas séries de palavras, que se possam conjugar umas com as outras.»
Por mim, limito-me a acrescentar que também não há duas séries de pessoas. Nem mesmo uma pessoa. Se a houver, como também dizia Rilke, não quer – ainda – dizer mais do que Elisabet Vogler não disse: nada.
in «João Bénard da Costa – Escritos Sobre Cinema», Tomo 1, 1º Volume, Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema, Lisboa, Setembro de 2018, pp. 291-296.