sexta-feira, 30 de setembro de 2022

Ma Femme Chamada Bicho (1976) de José Álvaro Morais



por José Álvaro Morais & Ilda Castro

(…) reagiram muito mal à ideia de que, de repente aparecesse um tipo que pertencia a uma geração nova em relação à deles, à do Cinema Novo. 
 
Isso era uma curta-metragem, uma média-metragem… 
 
Não, era uma longa-metragem, uma hora e meia. Feita com muito material de arquivo e, portanto, com muita montagem. Montar sempre me deu um gozo enorme. Mas também com material novo, que eu filmei com “Os Cómicos”, o Fernando Heitor, a Maria Amélia Matta, o Ricardo Pais, o Carlos Zíngaro. E havia também o Alexandre O’Neill, que escreveu os textos para todos os programas, e a quem eu pedi que fizesse o meu em verso. E a coisa saiu-me bem e acho que foi a partir do Cantigamente que começaram a falar de mim. 
 
E em seguida? 
 
A cena repetiu-se. Houve outra encomenda, agora da Fundação Gulbenkian, para um pequeno documentário sobre os desenhos que o Arpad Szenes tinha feito durante toda a vida em comum com a Vieira da Silva, os desenhos que ele tinha feito dela a dormir, a pintar, a ler. E, mais uma vez, era um trabalho destinado a outro realizador, o António Pedro Vasconcelos que, pelas mesmas razões - estava nessa altura a preparar o Oxalá - delegou em mim a realização desse pequeno documentário que deu uma longa-metragem, o Ma Femme Chamada Bicho
 
Em que ano? 
 
Em 77. 
 
E entretanto… 
 
Entretanto o Ma Femme Chamada Bicho teve algum prestígio na altura e eu tive um subsídio para um projecto que trazia da Escola de Cinema, que era O Bobo. Era uma adaptação libérrima do romance de Herculano, muito influenciada por algum cinema da época, coisas do Carmello Bene e assim. O CPC apresentou-o ao IPC na lista dos projectos para subsídio em 75. E o filme teve um subsídio mínimo, de 1.500 contos. Isso coincidiu mais ou menos com o fim do Centro Português de Cinema e eu fiquei com a produção a meu cargo. Contratei um senhor chamado Henrique Espírito Santo para director da produção. O filme começou de uma maneira quase suicida, 1.500 contos já naquela altura não davam para coisa nenhuma. Conseguimos pequenos apoios aqui e ali. A rodagem foi interrompida várias vezes e, quando o filme estava finalmente rodado, não havia um tostão para pós-produção. O negativo ficou retido nos frigoríficos da Tobis, e pronto. Seis anos mais tarde o António da Cunha Telles retomou a produção, com todos os direitos que lhe advinham como produtor, e o filme foi concluído.

in «obra cinematográfica de José Álvaro Morais», Videoteca de Lisboa, 1998.



quarta-feira, 28 de setembro de 2022

Giù la testa (1971) de Sergio Leone



por João Palhares

Porque é que John Mallory - a personagem interpretada por James Coburn neste Giù la testa – se apresenta bem baixinho como "Sean" quando Juan (Rod Steiger) lhe pergunta o nome nas estradas desertas do México? Juan não percebe sequer que é isso que Mallory lhe diz primeiro, mas a nós não nos é permitido esquecer porque o nome já tinha ecoado na maravilhosa música do genérico – depois, também – e vai continuar e continuar a ecoar e a assombrar e a seduzir. Tem qualquer coisa que ver com os fantasmas e o passado sombrio do irlandês revolucionário que troca a pátria pelo México e os ideais pela dinamite. Sempre nas sombras, sempre escondido mas a par de tudo, mesmo quando a revolução o atrai para o seu vórtice de sangue e massacres e ele anda à procura de prata montado numa mota que atravessa a paisagem mexicana. 
 
"Where there's revolution, there's confusion. And when there's confusion a man who knows what he wants stands a good chance of getting it". É com estas palavras que Mallory convence Juan Miranda a assaltar o banco nacional de Mesa Verde, um sonho já antigo deste último. Juan lembrava-se de uma cidade diferente. Tinha lá estado com o pai quando tinha oito anos e já o ouro chamava por ele. Estava em todo o lado. Mas Mesa Verde agora é uma vala comum. Mal reconhece a cidade e grita uivos de felicidade cai-lhe um cadáver fresco nos braços. Fuzilamentos e desordem… Reuniões e garantias revolucionárias. "Sean, Sean, Sean" outra vez. Assobios de promessas e sonhos lindos, ao longe. Leone traduz agora a música do genérico em acção e olhares. Zoom! Está já tudo combinado e está já John sentado à mesa no bar dos submundos revolucionários a beber tequila de tacada. É perto do meio-dia menos cinco e é hora. Comem-se pêras e maçãs e bate-se em bifes ao ritmo de Morricone com acenos e abrires de portas à mistura. Zoom! A cadeia de acenos leva-nos a Chulo, o filho mais novo de Juan, frágil e hesitante na multidão e na confusão da revolução, com um comboio de brincar armadilhado por um fio. Deixa-o à porta e arrasta o fio pela multidão em direcção ao bar e a John, que lhe afaga o cabelo e faz entrar Juan e a família no banco com mais uma explosão, voltando para a sombra. Só volta para coroar Juan como herói da revolução com um melódico "Viva Miranda!" e desaparece outra vez na multidão. O Juan é que está fodido que não havia ouro no banco nem queria nada com estas histórias… 
 
As promessas deste filme são sonhos impossíveis. O sonho de ir assaltar bancos para os Estados Unidos. "Johnny & Johnny". Nunca se pisa o solo do país vizinho mas ele vive nos olhos esfomeados de Juan e na banda-sonora. É a única fuga possível. Eles sabem disso mas só John sabe que não vão conseguir. 
 
Há filmes difíceis de ver e este filme tem pelo menos uma cena insuportável. Qualquer coisa perto dos baixares de cabeça e dos "para quê" das guerras de Ford, Walsh, Cimino, Milius e Peckinpah. E Leone encontra-os aqui. Na gruta a que John e Juan voltam depois de aniquilarem um exército inteiro naquela ponte e reduzirem tudo a pó. Antes da gruta, caem homens e cavalos no abismo de poeiras e pedras daquele vale-armadilha com os dois a assistir do alto do monte. Na gruta, à noite, Juan vê o mesmo feito aos seus filhos. Não suporta. Já se tinha explicado no monólogo das revoluções e agora sente as palavras na pele e nas entranhas. Tinha toda a razão. Vem o grande plano em que não vemos nada - só a cara do gigante Rod Steiger - mas percebemos tudo. "Johnny & Johnny" olham-se e ficamos nisto o tempo que é preciso até decidirem quebrar o silêncio e Juan sair com munições para castigar os responsáveis. Ouvem-se tiros e John vê os corpos espalhados pela gruta num movimento de câmara que re-encena o massacre com os sons da batalha de Juan, lá fora. Este longuíssimo plano-subjectivo dos cadáveres não cai nos crimes dos "travellings de Capo" deste mundo porque é James Coburn quem olha e a coisa toma outros contornos. Respira-se de alívio ao olhar para a cara dele. E ele parece assegurar-nos: não é mostrar por mostrar, não há abraços e choros, não há criancices demagógicas. Há um homem que olha, não diz nada e sai por um túnel, sonâmbulo e sem vida. Vai dizer e fazer o quê? "Jesus…" e cavalgar na madrugada como faz no Pat Garrett & Billy The Kid de Peckinpah. Não, nem isso chega. 
 
Neste filme só se pode olhar para cima. O que é que se pode escrever? Que é uma variação sobre o número "três"? Que como há três "Seans" na música há três maneiras de viver com os crimes e horrores da "revolução"? A de John, a de Juan e a do doutor Viega? Que Leone constrói o filme num balanço entre a comédia e a tragédia que é justificado e resolvido na cena do comboio e da pomba que caga na testa de Juan? Quando o ridículo chega aos limites do razoável já só se pode rir? Estão-se a rir só daquilo ou de tudo?
 
"Sean, Sean, Sean…
 
Porque é que é John diz que se chama "Sean"? 
 
Quando o Doutor Viega é avistado pelo James Coburn saído das grutas, está a vender os amigos de armas aos oficiais. Foi torturado e obrigado a falar. Está a chover imenso. Os flashbacks já quase nos explicam tudo. Foi aquilo. Nas últimas cenas, dentro do comboio, John diz a Viega (que entretanto foi libertado), que não julga ninguém. Que deixou de o fazer há uns anos, na Irlanda. Abateu, sabemos nós, um denunciante a tiro por vender irmãos de revolução. Matou um amigo, talvez chamado Sean. O melhor dos amigos. Um amigo que no fim só quer perdoar como se quer perdoar a si próprio e se calhar já não acha possível. É essa memória longínqua em corpo de assobios, ritmos e melodias que assola a consciência de John Mallory. Dias de Verão, passeios de carro, amizades eternas… 
 
Ou então John chamava-se mesmo Sean e decidiu que já não merecia ou suportava chamar-se assim. Renegou o passado esquecendo tudo e queria só renascer com a prata do México. Não sabia que o iam arrastar para outra igual… Nos últimos planos, já com o cigarro na mão, pode estar a pensar na revolução derradeira. Na revolução verdadeira. Reaver o passado e os prados da Irlanda… e poder chamar-se Sean outra vez. 
 
É por isso que sorri no meio da última cigarrada?
 
Publicado originalmente no site À Pala de Walsh a 13 de Abril de 2013.



quinta-feira, 22 de setembro de 2022

Cross of Iron (1977) de Sam Peckinpah



por André Miranda

O inimigo capturado pelo esquadrão de reconhecimento não é um qualquer soldado: é uma criança. Igual àquelas que, num último estertor de condenado, com a mão trémula, Hitler ordenou que defendessem Berlim até à morte. A guerra é um beco sem saída, fim último e inexorável do fascismo. O bacilo que lânguido e sub-reptício voga por entre as pessoas de bem, esses que supostamente urgem pela pátria e o reerguer da grandeza olvidada. Rebanho que aguarda o pastor hábil e feroz, a flama que faça o bacilo recrudescer. 

É bem dentro do território soviético que o sargento Steiner comanda o seu grupo em operações de reconhecimento da Wehrmacht. Um oficial que odeia oficiais; que odeia os homens do partido. Rege-se por outras regras que não as deles. Possui um olhar de têmpera imperturbável, uma envergadura impávida ao ribombar ininterrupto das bombas e um sorriso que só se abre quando está entre os seus. 

O que tropeça e conspurca a farda impoluta é o capitão Stransky. Aristocrata prussiano da mais pura linhagem, nasceu com a glória militar desenhada nos astros pelo sangue azul correndo-lhe nas veias. Almeja, apenas e só, uma cruz de ferro ornamentando-lhe o peito. Não é em Paris que a vai alcançar, onde o único risco em que incorre é humilhar-se desajeitado numa dança complicada. Por isso a frente oriental. Mas depressa o objetivo esboroa-se quando, pusilânime, berra, “estou ferido”, e apenas umas gotas liliputianas lhe escorrem da testa. 

Entre estes duas personagens, entre estes dois opostos, traça-se a derrota da Alemanha nazi, essa derrota já sem espaço para retiradas estratégicas e forçada a fugas vexantes. Resta a gargalhada de Steiner perante a inépcia de Stransky, o aristocrata predestinado que não sabe como recarregar a metralhadora, enquanto sobre eles desce o caos das explosões e o contínuo tiroteio. Eis, então, a guerra em todo o seu esplendor. O bacilo resplandecendo na sua volúpia pela morte.



quinta-feira, 15 de setembro de 2022

This Land is Mine (1943) de Jean Renoir



por António Cruz Mendes

Jean Renoir viveu exilado nos EUA durante os anos da ocupação da França pelos nazis e os filmes que aí realizou não foram particularmente favorecidos pela crítica que, como diz Filipe Furtado (Contracampo, Revista de Cinema), na apreciação da sua obra, tem preferido “saltar” de A Regra do Jogo (1939) para O Rio Sagrado (1951). Porém, Esta Terra é Minha (1943), foi um dos mais notáveis e populares filmes de propaganda política e ideológica produzidos nessa época de mobilização para a guerra contra o nazismo. 

Às imagens iniciais, subjaz uma amarga e irónica mensagem. Num grande plano, vemos um monumento erguido em homenagem aos soldados mortos na 1ª Guerra Mundial. No seu pedestal, uma inscrição: “À memória dos que morreram para trazer a paz ao mundo”. No chão, no cabeçalho de um jornal abandonado, pode ler-se “Hitler invade”. No discurso dos seus promotores, a guerra iniciada em 1914 era “uma guerra para acabar com as guerras”. Muitos discordaram disso e, para todos os efeitos, os planos seguintes revelam o fracasso desse alegado propósito. Tropas e carros militares ocupam o centro de uma povoação, o seu comandante dirige-se à Câmara onde o esperam as autoridades locais. O Presidente, depois de uma ligeira hesitação, com um tímido sorriso, aperta-lhe a mão. E a bandeira nazi é hasteada na fachada da sede do município. 

Como se vive numa terra ocupada por um exército invasor? A reposta poder-nos-ia- remeter para uma descrição naturalista do quotidiano dos habitantes daquela anónima povoação. As primeiras cenas parecem apontar nesse sentido, mas não era essa a opção de Jean Renoir e, rapidamente, o filme passa a focar-se nos dilemas morais que se vão colocar a um conjunto de personagens exemplares: Colaborar, procurando retirar o melhor proveito pessoal da situação existente? Adaptar-se, valorizando, acima de tudo, a segurança pessoal? Ou resistir, arriscando nisso a própria vida? Ao contrário de outros “filmes de guerra” então produzidos, centrados no combate dos exércitos aliados contra os nazis, o filme de Renoir fala-nos sobretudo da guerra interior que se trava na consciência das suas personagens. 

Manville, o Presidente da Câmara, Georges Lambert e os irmãos Martin, Louise e Paul, são as personagens-tipo que corporizam cada uma daquelas três opções. Tudo decorre num país não especificado, o que se compreende porque em qualquer parte do mundo, perante uma situação semelhante, haverá pessoas assim. E, como se diz numa passagem famosa de outro filme de Renoir, A Regra do Jogo, o problema é que “todos têm as suas razões”. Serão todas elas eticamente aceitáveis? O filme, com uma intenção, assumidamente pedagógica, propõe-nos uma reposta para essa questão, assumindo-se como um magnífico manifesto a favor da liberdade e da dignidade humana. 

Posto isto, ele arriscava tornar-se algo abstracto, mera ilustração de uma disputa de ideias. E, de facto, a magnífica sequência do julgamento, onde Lory comenta os comportamentos de Manville e de Lambert, fazendo a denúncia que se tornou célebre dos homens “fortes por fora, mas fracos por dentro”, são reconhecidamente discursivas e retóricas. Porém, a ambivalência das atitudes de Lambert e da mãe e, sobretudo, a personagem do professor Lory (uma excelente interpretação de Charles Laughton) salva-o da queda num possível esquematismo, oferecendo-lhe uma maior complexidade. 

Ao fazer de Lory, um homem tímido e covarde, ridicularizado pelos seus alunos e sufocado pela atitude protectora da mãe, um herói da resistência, o filme de Renoir mostra-nos, que circunstâncias extremas podem fazer de “homens fracos por fora, mas fortes por dentro” os inesperados protagonistas da História.



quarta-feira, 7 de setembro de 2022

The Mortal Storm (1940) de Frank Borzage



por Alexandra Barros

Enquanto num céu carregado de nuvens em movimento, elas se vão tornando cada vez mais negras e ameaçadoras, ouve-se em voz off
 
"Quando o Homem era novo sobre a Terra assustava-se com os perigos associados aos elementos. E gritava: ‘Os deuses do relâmpago estão furiosos, e eu tenho que matar o meu semelhante para apaziguá-los!’ À medida que o Homem se tornou mais audacioso, criou abrigos contra o vento e a chuva e tornou a força do relâmpago inofensiva. Mas dentro do próprio Homem havia elementos tão fortes como o vento e tão terríveis como o relâmpago. E ele negou a existência desses elementos porque não ousava enfrentá-los. A história que estamos prestes a contar é a da tempestade mortal em que o homem se encontra hoje. Ele grita novamente: ‘Tenho que matar o meu companheiro’. A nossa história pergunta: Quando  é que o Homem encontrará sabedoria no seu coração e construirá um refúgio duradouro contra os seus medos ignorantes?".  
 
Começa assim esta “obra-prima de Frank Borzage e um dos momentos maiores do cinema americano dos anos quarenta”[1]. O texto declamado, no entanto, abriria na perfeição um retrato dos tempos actuais. 
 
João Bénard da Costa escreveu uma folha de sala de quatro páginas sobre Tempestade Mortal, onde descreve demoradamente algumas das cenas-chave do filme, para nos falar: do quarto encontro de Frank Borzage com o par prodigioso Margaret Sullavan e James Stewart (“de todos, o actor que melhor se ‘casou’ com ela por idêntica pureza e por idêntico fervor”); da densidade das personagens; da excelência dos vários actores, destacando Maria Ouspenskaya; das imagens encantatórias; do rigor compositivo; da força das cenas; da crueldade, ambiguidade e fragilidade dos homens, mas também da lucidez, generosidade e grandeza doutros homens; da luz e das trevas… 
 
Nesse texto, diz “falar fragmentariamente” do filme, apesar de ele ser um todo, e é com alguns desses fragmentos que tento compor esta folha de sala, por falta de habilidade para pegar neste admirável filme, com que fazemos a nossa rentrée. 
 
The Mortal Storm é quase sempre citado pela fabulosa morte de Margaret Sullavan nas neves [...] essa espantosa morte, certamente das mortes mais líricas e mais belas do cinema [...]. E se nunca mais se esquecem mortes dessas – e sequências dessas – segredo do lirismo intimista do soberbo melodramatismo do grande Borzage, The Mortal Storm merece ser recordado muito mais do que pelas celebradas sequências finais e é – todo ele – um prodígio de construção e de visão.  
 
Um dos poucos filmes que em 1940 – ainda a América era neutral – levou Hollywood a pisar o risco e a pronunciar-se abertamente contra o nazismo[2], [...] The Mortal Storm é um todo admiravelmente construído em torno dos temas (depois tantas vezes repetidos) da destruição de uma família e da ascensão do nazismo. [...] 
 
Começado entre as nuvens (nuvens negras) por uma voz off declamatória e retórica, o filme termina com o texto de Minnie Louise Hopkins (“Gate of the Year”) que incita a “go out into the darkness”. Antes, [...] em off ouvem-se as vozes de Freya e do pai, falando de “gracious living, tolerance, sense of humour”. Por esses valores vale a pena enfrentar as trevas das tempestades mortais. Em 40, Borzage, com este sublime melodrama, anuncia as razões que Roosevelt – um ano mais tarde – daria à América para a necessary war. E anuncia-as com uma história exemplar, exemplarmente encenada e que leva a sua arte de meios-tons e meias-tintas à mais suprema hora de beleza. 
 
Entre o Carry On do dia de anos do Professor e o Wacht am Rhein da cervejaria, a coralidade[3] adquire o sentido oposto. Mas contra ela emergem os quatro protagonistas que no dia do advento de Hitler se não levantaram da mesa. Eles provarão que esses corações individuais jamais se vergarão perante o todo totalitário. Por isso ascenderão à luz da ressurreição e as suas perspectivas nunca serão distorcidas [...]. Por um lado, a grande harmonia cósmica e moral. Por outro, as grandes sombras da morte. Só o amor transcendental como a liberdade transcendental – aqui personificados pela imponderabilidade e beleza de Margaret Sullavan e James Stewart – podem varrer as segundas e restituir as primeiras. The Mortal Storm, a mais comovente das obras de Borzage, é o filme que reúne o céu à neve, na apoteose da mesma brancura.” João Bénard da Costa

[1] João Bénard da Costa.
[2] O filme assumiu audaciosamente o antinazismo antes da entrada dos EUA na guerra (que só ocorreu depois do ataque a Pearl Harbor, em 1941). A Alemanha não aceitou a crítica, proi- biu a exibição do filme e baniu todos os filmes da MGM no país.
[3] Relativo a coro, conjunto de can- tores que cantam em conjunto e ao mesmo tempo.