quarta-feira, 18 de janeiro de 2023

Longe (2016) de José Oliveira



por António Cruz Mendes

Em Longe, um homem percorre as margens do Tejo, vagueia por Lisboa, para numa tasca onde reencontra um velho amigo e recorda ocorrências passadas, como que ganhando coragem para o seu objectivo final, reencontrar a filha de quem se separou logo depois do seu nascimento. 

O nosso cineclube editou recentemente uma tese de doutoramento com o título O Cinema: Uma Estética Crua. “Crua”, porque o cinema não inventa as imagens que nos dá a ver, mas regista com a precisão de uma máquina aquelas que o mundo nos oferece. Nesse sentido, aquela designação, uma “estética crua”, tem uma natureza descritiva: seria própria de qualquer obra cinematográfica. Mas, ela assume também um sentido normativo quando deixa implícito que o melhor cinema é aquele que nos obriga a ver aquilo que, estando presente na vida quotidiana, a nossa distração ou a nossa dificuldade em encarar a realidade, tornou invisível e é nesse sentido que a tese de João Paulo Cruz Mendes se refere à literatura realista e naturalista, que eleva à categoria da arte o que é banal, como uma precursora do cinema. 

É isso aquilo que faz o cinema de José Oliveira e, em particular, este filme. Um cinema despojado de glamour e de peripécias aventurosas, onde, como diz Siegfried Kracauer numa citação escolhida para epígrafe da referida tese, a beleza se pode descobrir “an ordinary suburban street, filled with lights and shadows with transfigures it”, quando “a breeze moved de shadows, and the façades with the sky below began to waver”. 

Os filmes de Pedro Costa, trouxeram para o cinema, humanizaram e deram protagonismo a figuras que a nossa sociedade reduziu a estereótipos e remeteu para uma obscura marginalidade. José Oliveira colheu essa herança e deu-lhe um cunho particular, inspirando-se nas suas próprias experiências de vida. As curtas-metragens que vimos na semana passada (Pai Natal e Sem Abrigo) são ainda primeiros passos dados nessa via, mas sinalizam já opções estéticas e temáticas muito sólidas que iremos ver mais tarde desenvolver-se nas suas longas-metragens, Conselhos da Noite e Guerra. E, aqui chegados, é necessário sublinhar o contributo de José Lopes e de Marta Ramos que, com ele, formam os “três camaradas” que dão o nome a este ciclo e que o acompanharam nesse processo de descoberta e realização, do qual nascerão, por certo, ainda muitos mais frutos. 

Em Longe, seguimos os passos do protagonista. O registo é quase documental. Vemos o rio, percorremos ermos e ruínas e passeamos pelas ruas da grande cidade. Breves imagens e diálogos surgem, por vezes, como lampejos que iluminam janelas para outras histórias. Assim, um homem, diante da sua casa num lugar desolado à beira-rio, diz-nos que já vive ali “há tanto tempo que já nem me lembro”; numa rua da cidade, num cartaz de propaganda política, um partido afirma ter “Soluções para uma vida melhor”; dois amigos, sentados à mesa de uma taberna, recordam tempos passados e um deles remata: “Éramos os maiores!”. 

Nessa deambulação pela cidade, é um percurso de vida que se refaz. A mala que o protagonista carrega diz-nos que ele vem de longe, de outros lugares. No princípio, houve uma criança que nasceu e, não sabemos porquê, foi criada num orfanato. No fim, ela já é adulta. A cena final, do reencontro do pai e da filha, é filmada à distância, pudicamente. Estamos perante um filme pensado, realizado e interpretado com uma rara sensibilidade. 
 
Moments Musicaux é o nome de seis pequenas e delicadas peças para piano de Schubert e assim podiam ser também designadas as cinco curtas-metragens que projectamos depois de Longe e que, com ele, fazem um contraste de claro-escuro. A vida numa grande cidade pode ser difícil, árida e fatigante, mas algumas pessoas reúnem-se para fazer música ou dizer poesia e o cinema é convocado para eternizar essas ocasiões de amizade e beleza.



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