quarta-feira, 4 de janeiro de 2023

Pastor da Noite (2016) de Mário Fernandes



por Alexandra Barros

Na curta biografia do realizador Mário Fernandes encontrada no site dos “Encontros Cinematográficos”, podemos ler: “Nascido em 1985, em Castelo Branco, na Beira Baixa, emigrou em 2002 para a Cinemateca Portuguesa, licenciou-se em Direito e tirou um mestrado nessa área. Entre a Gardunha e a Cinemateca, conheceu bons amigos com quem iniciou a aventura de fazer filmes sem orçamento. Além de várias experiências profissionais – de jurista a recepcionista nocturno -, colabora voluntariamente com os “Encontros Cinematográficos” e escreve de vez em quando para a FOCO, a única revista de cinema que respeita.” 
 
Comecei por aqui para comentar a nossa sessão de hoje porque o filme escrito e realizado por Mário Fernandes está cheio de pequenos corações espelhados[1] que reflectem esta(s) vida(s). O Pastor da Noite, possivelmente uma personagem autobiográfica, é o recepcionista nocturno do “Youth Hostel” lisboeta “Unreal” e é interpretado por José Oliveira, realizador de cinema por vocação, actor por dedicação, um dos fundadores do Lucky Star – Cineclube de Braga e amigo de Mário Fernandes. As ovelhas - tresmalhadas - são os frequentadores do “Unreal”, mais ou menos bem recebidos pelo Pastor, de acordo com a respectiva pinta. A juventude que frequenta o hostel é nenhuma, mas não faltam clientes ao estabelecimento. Chegam, por vezes, em magote, cada um acompanhado apenas pela sua solidão. 
 
O Pastor da Noite é cinema DIY, feito pelo gozo, pela paixão. É feito com os amigos; com os livros, a música e os filmes amados; com uma ou outra embirração de estimação; com os lençóis lá de casa, as garrafas de whisky compradas no Minipreço e já meias-bebidas na noite anterior à rodagem; com o pássaro de plástico engaiolado que foi parar ao filme porque sim ou talvez porque alguma outra coisa: “Acts of charity: put coins to sing the bird”. Porque “quem canta seus males espanta”, atira um cliente a quem é dado alojamento em troca do seu único bem: um globo terrestre electrificado. 
Pastor da Noite - “Preciso de um documento de identificação: cartão de cidadão, carta de condução, número de contribuinte, número da segurança social, comprovativo de serviço militar cumprido ou licença de sobrevivência actualizada.” 
Cliente - “A licença de sobrevivência caducou, mas tenho um cartão de amigo da Cinemateca. Passo lá os dias. O pior são as noites.” 
A outro cliente, hipocondríaco diagnosticado, o oftalmologista desaconselhou o cinema porque os músculos oculares já não se adaptam à rapidez das imagens. Certamente pensando noutras imagens que não as aceleradas do western mudo do início do século passado As Portas do Inferno[2], com que o Pastor preenche o aborrecimento das noites pouco movimentadas na recepção. Para outros aborrecimentos, o Pastor guarda na caixa de uma cassette VHS do Dirty Harry[3], uma arma que vemos carregar no início do filme. Antes, porém, lavara as mãos como se se preparasse para uma operação cirúrgica. A arma nunca chega a ser disparada, mas ao Pastor nunca falta uma frase cortante para atingir os clientes que lhe interrompem a leitura (de uma após outra edição) do “Tom Jones” de Henry Fielding. 
 
É numa noite afortunada, em que “só se matou o Sr. Tomás do 509”, que os serviços do Pastor são dispensados pela gerente, com um simples: “Amanhã podes deitar-te mais cedo. Vou vender tudo aos chineses.” Afinal as despedidas querem-se curtas, opina, enfadada que ficou com a leitura da nota suicida poética do Sr. Tomás. O patrão nunca chega a ser visto. É “caso incógnito”. O Pastor da Noite sai para as ruas ensolaradas. Aguarda-o o banco de jardim onde dormita, quando termina o seu turno, no cemitério onde jaz Henry Fielding. 
 
O filme abre com uma frase de Apollinaire - “La porte de l’hôtel sourit terriblement” (“A porta do hotel sorri terrivelmente”), fecha com uma em latim - “Hic finis chartaeque viaeque” (“Este é o final da história e da viagem”). Pelo meio, há a música de Händel a acompanhar a lavagem dos lençóis sujos e a leitura de Henry Fielding, alfinetadas ao fenómeno da gentrificação (“Proibida a entrada a menores de 60€” lê-se numa frase pintada numa parede), muitas referências cinéfilas e literárias, homens com “incomensuráveis resistências”, paisagens urbanas e pecados queimados, num cinema completamente punk no coração e noutras não menos nobres entranhas.

[1] Embora estes sejam metafóricos, a imagem é inspirada num pequeno espelho em forma de coração que aparece, de facto, numa das cenas do filme.
[2] Hell's Hinges, de William S. Hart e Charles Swickard.
[3] Filme de Don Siegel, cujo título português é A Fúria da Razão.



Sem comentários:

Enviar um comentário