quarta-feira, 11 de janeiro de 2023

Pai Natal (2010) de José Oliveira



por Alexandra Barros

Por onde começar a falar do José Oliveira? Pela primeira sessão do Lucky Star, cineclube que fundou com João Palhares, em Braga, em Janeiro de 2016. Nesse dia, pensei que nascia ali qualquer coisa excepcional. E não só porque a abertura oficial consistia numa sessão dupla preparada e apresentada pelo realizador Pedro Costa (O Nosso Homem de Pedro Costa + Monsieur Verdoux de Charles Chaplin). Comecei a guardar as maravilhosas folhas de sala do José Oliveira e do João Palhares como preciosidades. Ensinaram-me (e continuam a ensinar) a ver em cada filme mais cinema do que aquele que eu era capaz de ver. Mas mais do que isso, ao falar dos filmes falam para lá dos filmes, falam de todos os sítios onde os filmes os levam, entrelaçam as suas paixões, revoltas, dores, alegrias, amizades, dificuldades, dias e noites, sem nunca ficarem neutros e sem nunca se preocuparem com poses, modas e tendências. 
 
O José diz gostar do escuro, no autobiográfico Pai Natal, mas o cineclube que fundou tem uma estrela no nome e é totalmente sobre preservar a LUZ. 
 
“[...] o cinema que mais me disse foi o de John Ford ou o de King Vidor, nunca baixar os braços, dar tudo, e meter certas coisas no devido lugar de onde jamais deviam ter saído. Mesmo que a violência seja necessária, em correspondência com o amor desmedido. É seguindo essa demanda e essa cepa que os filmes se podem por milésimos de segundo aproximar da incomparável e selvática aventura da vida.” em Conversa com José Oliveira por Manuel Pinto Barros (Jornal dos Encontros Cinematográficos 2016) 

Em Pai Natal, José vai a Lisboa para ir buscar livros, ver filmes e vaguear, mas sente-se perdido porque não consegue deixar de andar sempre pelos mesmos sítios. Em Sem Abrigo também anda perdido, mas talvez essa desorientação seja afinal a forma de chegar ao que mais importa. Quando se encontra com uma outra perdição, as palavras que não são ditas, ou pelo menos não ouvidas, poderiam ser talvez: “que estranho caminho tive que percorrer para chegar até ti”[2]. Ir e Vir, cruza-se com idênticas inquietações às de Pai Natal e de Sem Abrigo, numa canção cantada e tocada por José Lopes, no filme A Pena Perdida (também de José Oliveira). Deste seu grande amigo e mestre, diz: 
 
“Conheci o Zé Lopes em 2010. No centro do centro da cidade de Lisboa. Juntamente com os meus melhores amigos, ficámos mais de uma hora na conversa. Tudo parou e a brutal movimentação do Rossio suspendeu-se. Senti uma violência tal, uma fúria e uma ternura que só conhecia das pessoas simples e complexas da minha aldeia minhota. Trabalhadores do campo e criaturas perdidas da noite que te tratam como igual. Depois, passei horas e horas e anos com ele. Frente a frente num banco do jardim ou a quatrocentos quilómetros de distância. Quase sempre a escutar, os seus medos e as suas raivas, as suas certezas e a sua inexorável liberdade. A sua companhia continua para mim vital e indecifrável, fonte de todas as dádivas e segredos. Se pudesse fazer mais um filme, ou muitos, à maneira da Hollywood clássica ou das fábricas genuínas, gostaria que fossem todos com ele. Assim, em Lisboa ou em Braga, como no Mississipi ou em Monument Valley. Naturalmente, sem contratos, nem princípio, nem fim. O que gostava mesmo era de fazer filmes que fossem entendidos aqui e na China, por uma criancinha ou por um velho sabido.” em Conversa com José Oliveira por Manuel Pinto Barros (Jornal dos Encontros Cinematográficos 2016) 
 
Ir, vir, talvez não voltar, chegar, partir, retornar, errar, vadiar, flanar, deambular, procurar, encontrar, recomeçar. “Estamos sempre de chegada, estamos sempre de partida. Donde a eternidade ou a perfeição sempre almejada pode estar no mais efémero momento. [...] Do mais frágil e intenso dos realizadores que o cinema já conheceu, Nicholas Ray, surge essa busca, talvez perpétua, pelo centro, pelo pleno, pela casa, pela comunidade. Não sei se Ray lá chegou, [...] mas acredito que seja a mais importante das lutas.” em Conversa com José Oliveira por Manuel Pinto Barros (Jornal dos Encontros Cinematográficos 2016) 

Escolhi esta conversa para a folha de sala, mas poderia ter escolhido qualquer entrevista ou qualquer um dos textos do José encontrados em diversas publicações (Ípsilon, À Pala de Walsh, Raging-b, ...) ou no livro Uma Viagem Pelo Cinema Americano (co-escrito com João Palhares). Os seus filmes, os seus heróis, a escrita, o pensamento e a vida estão amalgamados. Como num fractal, olhar para uma parte é olhar para o todo. A conversa termina com uma citação de Nicholas Ray, um dos heróis do José: “Take care of each other. It’s your only chance of survival. All the rest is vanity.” Remain In Light[3], acrescento, citando heróis dos meus.

[1] Nessa cena lembrei-me do prelúdio da canção “Carne Eléctrica”, dos Um Zero Amarelo: “Como é que ocupas o teu tempo? / A dormir e a passear. / A passear por onde? / Por todos os sítios. Os sítios que eu não conheço.” Falo disto porque sim e porque ofereci Um Zero Amarelo, dos Um Zero Amarelo ao Pedro Costa quando esteve pela primeira vez em Braga, para a “abertura oficial” do Lucky Star e porque não perco uma oportunidade de falar deste maravilhoso e subestimado disco.
[2] Pickpocket, de Robert Bresson, 1959.
[3] Álbum dos Talking Heads, Sire Records, 1980.



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