por João Palhares
Mênfis, era das pirâmides. Cufu, o Faraó reinante, manda erguer a Grande Pirâmide sob o nome de “Horizonte de Cufu”, em Gizé, a vinte quilómetros da capital do reino. Tem duas esposas. Nove filhos. Cinco filhas. Dizem que a sua sede por ouro e riquezas, que a sua necessidade de dinheiro é tanta que enviou uma das cinco filhas para um bordel para os angariar por ele, dormindo para isso com o máximo de homens que conseguisse apenas durante uma noite. Dificultou o culto aos deuses e encerrou os templos, acabando com os sacrifícios dos sacerdotes e pondo todo o Egipto às suas ordens e ao seu serviço. Cem mil trabalhadores em Gizé, durante vinte longos anos. Três milhões de metros cúbicos de pedra com uma base de três hectares. Um labirinto de pedra maciça selado e construído com soluções de engenharia revolucionárias e que darão certamente muito que falar ao longo dos séculos. O preço da imortalidade de um deus terreno, descendente directo dos criadores do Universo, com quem partilha o mundo e o destino dos homens.
Centenas de milhares de almas cativas pelo projecto de uma só, visitada em sonhos por imagens de um mundo virado do avesso e com as entranhas para fora, o céu a engolir a terra e a terra a engolir os homens, estrelas que caem do firmamento para horror de populações inteiras e que as sequestram e sepultam num silêncio eterno por baixo de montanhas gigantescas. Os oráculos e os sábios falaram. Se nada fosse feito, viria um grande dilúvio e dizimaria o Egipto e o seu povo. A grande pirâmide, como as montanha milenares que rasgam os céus, torna-se então o alfa e o ómega, o princípio e o fim de todas as coisas. Benben, o monte primordial que saiu das águas de Nun, e a morada final de Cufu, munida de barcos que navegarão pelas nuvens até ao Sol com Hórus a seu lado, e a partir daí de nascente a poente num dia em tudo parecido com o infinito, regressando pela noite através do rio sem nome que perfura o planeta Terra. Os elementos confundem-se e o tempo dilata-se. Presente, passado e futuro tornam-se a mesma coisa.
Cairo, 1955. Howard Hawks prepara um plano de A Terra dos Faraós. Deve ter um livro de Jorge Luis Borges escondido dos olhares ora indagantes ora reverentes da equipa técnica, dos actores e dos milhares de figurantes locais que compõem o alcance da sua visão. Já tinha feito de tudo em cinema, desde comédias, westerns, film noirs, musicais, policiais, melodramas, filmes de
aventuras, filmes de guerra, de ficção científica, de aviação, sobre corridas de carros e pilotos, filmes mudos, filmes sonoros, filmes a cores, ambientados na América, em França, no Médio Oriente, em Inglaterra, na Martinica, na Alemanha, no Pólo Norte, da pré-história à actualidade. Mas precisava de tentar algo novo e decidiu-se por um épico trágico filmado em Cinemascope e ambientado no Egipto durante a Quarta Dinastia, mais precisamente no século XXVI A.C. Falou com William Faulkner, falou com Jean-Philippe Lauer, contratou Mayo como figurinista e Alexandre Trauner como director de arte. “(...) Comecei a pensar na construção das pirâmides,” disse Hawks. “Pensei que era uma história parecida. Gosto muito deste género de trabalho. Escrevemos, pois, o nosso guião baseado numa única ideia: a construção de uma pirâmide. Esses empreendimentos, construções de aeródromo ou de pirâmides, servem para mostrar o poder dos homens, o que lhes é possível fazer com as pedras, com a areia e com as mãos.”[1]
Não lhe terá escapado que o trabalho na pirâmide, dependente duma multidão de gente que está sob as ordens dum só homem, não era muito diferente de uma rodagem, sobretudo se pensou na era dos pioneiros e nos empreendimentos de Greed, de Erich von Stroheim, Metropolis, de Fritz Lang, ou Napoleão, de Abel Gance. Também não lhe terá escapado que, apesar das grandes diferenças nas mazelas pessoais e imediatas dos métodos nos corpos e nas almas de quem faz esses trabalhos, é possível tecer comparações entre a imortalidade conquistada por um faraó com poder e com dinheiro e a imortalidade conquistada por um artista com visão e com talento. A partir daí as metáforas tornam-se constantes. Há quem acredite na vida depois da morte e veja o estágio terreno como transitório, a imortalidade está assegurada por herança divina. Há quem acredite que é nesse estágio que se tem a única oportunidade para alcançar a paz sem ter de dar provas de valor a ninguém. E há quem pense que é vivo que se alcança a imortalidade, com ambição e dedicação suficientes para estabelecer um diálogo com os séculos, todo um mundo, das armadilhas de Fausto aos milagres de Hawks. Aí os barcos solares tomam a forma da inspiração, a síntese e o absoluto são encontrados com a articulação entre os “funerais” e as “serpentes”, as únicas coisas que era possível filmar nesse formato glorioso a que se chamou Cinemascope.
Braga, 2024. As pessoas deixam de morrer. Vão-se ouvindo relatos e notícias de casos semelhantes noutras cidades. E os nossos amigos e mestres e exemplos afinal não morreram. Todas as lições que aprendemos ao longo da vida e a muito custo para nos protegermos dos outros revelam-se perfeitamente superficiais e os homens podem finalmente confiar no próximo. Já não adoecemos nem lançamos pragas sobre os vivos, os hospitais e os rancores foram desactivados. Continuamos a aprender com os nossos avós. Ainda podemos ouvir as histórias e as canções, ser desarmados pela genuinidade inaudita daquele homem que resolvemos escolher um dia como nosso irmão mais velho. É possível visitar num café aquele outro que nos abriu o seu mundo por ver qualquer coisa de si próprio, por mais pequena que fosse, em nós. Telefonar aflito com trabalho a um colega que respeitávamos e que, se não tinha soluções imediatas, tinha pelo menos conselhos para prosseguirmos com outro alento. O ano passado dizia-se que a morte era uma coisa banal e que cada um carregava os seus fantasmas em silêncio. Hoje não é possível um homem ferido e com ligaduras muito gastas pelo corpo, perto do fim da linha, virar-se para nós e dizer, “pode ser que um dia nos encontremos noutras circunstâncias.” O futuro, essa incógnita outrora capaz de nos causar um nó na garganta apenas com um vislumbre ou um pequeno anseio, tornou-se finalmente radioso.
[1] “Entretien avec Howard Hawks”, por Jacques Becker, Jacques Rivette e François Truffaut, Cahiers du Cinéma, nº 56, Fevereiro de 1956.