quarta-feira, 27 de setembro de 2023

Moses und Aron (1975) de Danièle Huillet e Jean-Marie Straub



por António Cruz Mendes

Moisés e Aarão não é um filme que pretenda provocar uma adesão fácil do público. Sendo uma versão cinematográfica da ópera de Schönberg, a primeira sensação de estranheza pode ser desde logo suscitada pela música, que obedece ao sistema dodecafónico e a uma forma de expressão vocal, a Sprechgesang (canto falado), uma forma expressiva entre a palavra e o canto. 

O sistema tonal, onde a composição se organiza a partir de uma nota privilegiada, a tónica, imperou na música ocidental dos séculos XVI até grande parte do século XX. Mas, alguns músicos adoptaram, sobretudo a partir do início do século XX, o sistema atonal, onde todas as notas teriam uma igual importância. Entre eles, estava Schönberg que, no entanto, considerava que a atonalidade nunca era completamente alcançada porque, mesmo nas composições atonais, acabavam sempre por surgir notas com uma função predominante. Para o evitar, inventou o sistema dodecafónico que se baseava em sucessões de séries de doze notas diferentes numa ordem escolhida pelo compositor, segundo regras que evitavam repetições. Habituados como estamos à música tonal, as suas composições podem começar por nos parecer esquisitas. Mas, isso não nos deve impedir de as apreciar. Apenas não podemos procurar nelas aquilo que é estranho à sua “vontade artística”. Tal como não podemos julgar uma pintura expressionista (Schönberg foi também um pintor), usando os critérios da crítica neoclássica, não podemos avaliar uma composição de Schönberg comparando-a com uma obra de Mozart ou de Beethoven. 

A ópera, datada de 1932, teve uma recepção difícil e tem sido poucas vezes representada. Schönberg escreveu-a nos Estados Unidos, onde se tinha refugiado devido à perseguição dos judeus na Alemanha e na Áustria, ocupada pelos nazis. O seu tema, o Êxodo, a fuga dos hebreus do Egipto e a sua demanda da “Terra Prometida” não é estranho ao tempo em que foi escrita. 

O interesse de Straub e Huillet pela música já os tinha levado a filmar A Pequena Crónica de Anna Magdalena Bach, onde Bach é interpretado por Gustav Leonardt, um famoso cravista, e o guião se baseia numa leitura do diário íntimo da sua segunda mulher. Conta-se que, quando, em 1958, viu pela primeira vez Moisés e Aarão, Straub ficou tão impressionado que imediatamente telefonou à sua companheira, que se encontrava em Paris, para vir à Alemanha assistir á próxima apresentação. Dessa descoberta, nasceu um pequeno filme de 15 m, Einleitung zu Arnold Schönbergs Begleitmusik zu einer Lichtspielscene e, mais tarde, o filme que agora iremos ver. 

Jean-Marie Straub e Danièle Huillet são também conhecidos por serem autores de filmes despojados, austeros, sem concessões ao gosto dominante do grande público. Logo no início de Moisés e Aarão, percebemos a sua preferência por planos-sequência de longa duração. Durante cerca de 6m, ouvimos Moisés interrogar-se acerca da sua capacidade para transmitir a palavra de Deus ao seu povo. “Quem é que vai acreditar em mim?” Um grande plano da sua nuca (mal se vê o seu nariz e a sua testa enrugada) mostra-nos que é no seu íntimo que se trava essa luta com as suas fraquezas. Por fim, submete-se à vontade de Deus, que, sendo omnipresente, é invisível. A sua voz chega-nos através do coro, enquanto a câmara percorre num muito longo travelling montes áridos e céus enevoados. 

A ópera centra-se na oposição Moisés - Aarão e o filme sublinha-a associando as aparições do primeiro a vastos espaços naturais e as do segundo aos espaços mais confinados de um templo romano escolhido como cenário. Segundo a tradição, Moisés tinha graves problemas de dicção. A solução que encontrou foi convencer o seu irmão mais velho, Aarão, a ser o seu porta-voz, o que estará na origem dos problemas que advirão. O filme de Straub e Huillet vai centrar-se em larga medida nas questões inerentes à relação da legitimidade com a representação, da ideia com as dificuldades que decorrem da sua realização, dos meios com os fins, da relação entre a teoria e a prática. É uma questão claramente política cuja abordagem deve ser compreendida no contexto dos anos 70, na ressaca dos movimentos estudantis desencadeados pelo Maio de 68. O filme é, aliás, dedicado a Holger Meins, militante da Fracção do Exército Vermelho, uma organização de guerrilha urbana também conhecida por “Grupo Baader-Meinhoff”, que morreu em greve de fome na prisão. 

Moisés encarna o ideal, a defesa de um Deus único e todo-poderoso, enquanto Aarão assume uma posição mais pragmática. Se a unidade do povo é uma condição da sua sobrevivência nas duras circunstâncias da travessia do deserto, o melhor não será ceder àqueles que exigem uma imagem de Deus que possa ser adorada? Aliás, para que serviria a mensagem divina, se não houvesse um povo para a escutar? E como podemos adorar algo que não conseguimos ver? Moisés é um pensador, mas Aarão é um imagista. Um Bezerro de Ouro é então erigido e o povo entrega-se à sua adoração e à celebração de orgias, afastando-se da palavra de Deus. 

A ópera de Schönberg nunca foi acabada e, no filme, na sequência final, Moisés retira-se sozinho e angustiado. Nós, que conhecemos a história do Êxodo, sabemos que nem ele, nem Aarão, chegarão a ver a Terra Prometida.




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