sexta-feira, 16 de fevereiro de 2024

Ruten no ôhi (1960) de Kinuyo Tanaka



por João Palhares

Três ideias na retina enquanto as semanas nos vão desafiando a sair de casa para às vezes fazer coisas que não temos grande vontade de fazer ou ouvir coisas que não queremos ouvir. “Podem dizer o que quiserem da ditadura, mas desde que eu tenha o meu dinheiro tanto me faz se vivo numa democracia ou numa ditadura.” O estado do mundo também não ajuda, os temas parecem invadir tudo e o facto de uma melodia nos dizer alguma coisa ou um plano nos deixar boquiabertos pode parecer para os outros a coisa mais insignificante do mundo. Uma das reacções possíveis talvez seja ir gritar “DARIO ARGEEEENTO!” para o meio da rua, só que convertidos nem vê-los. A ideia de que se partilha um segredo ou se vislumbra um mistério também pode ser suficiente, mas se calhar é um bocado perigoso. Por sabermos por exemplo que às vezes se anuncia cinema às segundas-feiras, mas o cinema infelizmente não sai à rua connosco. Por concordarmos ainda com Manoel de Oliveira, que quando foi acusado de reaccionário pelos colegas de profissão por se ter fechado num estúdio durante o 25 de Abril e ter feito Benilde, lhes respondeu que “o cinema revolucionário está atrasado em relação à revolução.”

O tema não é tudo. Quando as legendas não eram prática corrente e os filmes se viam na mesma, Jacques Rivette lembrou-se de escrever que Mizoguchi não era um nome próprio, mas sim uma “língua familiar. Qual? A única que almeja qualquer cineasta: a da mise en scène.” Um encadeamento de imagens, se trabalhado, pode ser suficiente para nos situar e nos fazer perceber certas coisas mesmo que não entendamos japonês, ou chinês, ou até italiano, espanhol ou inglês. Isto foi há sessenta e seis anos, portanto não é de admirar que hoje baste para um cineasta grego esquecer totalmente a sua língua, contratar actores americanos, ingleses, alemães e até fadistas portuguesas e pô-los a dizer as coisas certas com os planos errados para ser levado a sério e conquistar o mundo e os seus pares. É uma grande chatice, para quem nunca viu o filme, saber que houve um cientista que trocou o cérebro duma mulher pelo duma criança, que se fala de filosofia e de socialismo e que alguém morre no fim, porque o tema é tudo.

Mas felizmente as ideias, de alguma forma, vão passando. Wyatt Earp, vindo de nenhures como um pequeno ponto no horizonte, chega à cidade de Wichita. Apreensivo, aceita o cargo de xerife e proíbe o porte de armas nessa pequena cidade no oeste americano. Toda a história do filme nos é contada no genérico pela voz de Tex Ritter numa bela canção escrita por Hans Salter e Ned Washington, pelo que sabemos que as descobertas terão de ser outras. Entre mais de cem ideias, uma que fica: num dos momentos mais tensos do filme, Wyatt Earp sai de uma confrontação com um velho aliado que agora é seu inimigo e a esposa deste último segue Wyatt até à porta para ver se há hipóteses de reconciliação. Não há. Wyatt sai de casa deles e é atacado por homens a cavalo que disparam na sua direcção. Ele baixa-se e corta para um plano de uma porta crivada de balas. Num instante percebemos que a esposa morreu, noutro intuímos que quanto mais uma pessoa se arma e se protege e se encerra e se ressente maiores são as probabilidades de que o mundo lhe bata à porta e ela vá desta para melhor. É em Wichita, do grande Jacques Tourneur, e foi possível vê-lo no canal Fox Movies na tarde de dia 3 de Fevereiro de 2024.

Uma viúva paga os estudos da filha com o seu negócio de gueixas, o que causa um distanciamento triste e trágico entre as duas. Há um médico jovem por quem ambas se interessam até se conseguirem encontrar uma à outra. A certa altura, vêem os três uma peça. Entre possivelmente cem ideias, das quais fazem parte o labirinto dos sentimentos demonstrado no labirinto da casa que os três percorrem perto do final do filme e a apresentação da dita peça com um travelling para a frente que encontra os actores e um travelling para trás que encontra os três apaixonados, uma que fica: dois dos actores da peça falam de uma terceira, uma velha apaixonada, e apontam para ela dizendo, “olhem para ali. É a velha nos auges da loucura.” E não a vemos a ela, mas à viúva, num plano mais aproximado, e o teatro sai dos seus palcos para o teatro da vida através do cinema. É em A Mulher de Quem se Fala, do grande Kenji Mizoguchi, e foi possível vê-lo no auditório da BLCS na noite de 6 de Fevereiro de 2024.

Uma jovem japonesa é escolhida através de uma fotografia pelo irmão do imperador da Manchúria, sendo obrigada a abandonar a família e a casar com ele sem encontrar uma vida melhor ou propriamente imperial. O exército do império japonês controla tudo e tinha a esperança de que a jovem actuasse pelos interesses deles, mas ela acaba por se afeiçoar ao marido. Entre praticamente cem ideias, pois talvez não estejamos nas alturas de A Lua Ascendeu ou Para Sempre Mulher, mas das quais fazem parte o belíssimo prólogo do filme, depois o genérico com a jovem esmagada e siderada pelas imagens dos soldados que passam por ela e o final misterioso e poético em que as palavras obedecem a um tempo e as imagens a outro tempo, uma que fica: por um enquadramento pelos pés, que à primeira vista até pode ser confundido com uma dança inocente, vemos uma arma que cai e um corpo que se põe por cima dela em posição horizontal. As implicações tornam-se óbvias mesmo antes da princesa dizer, “Podes sempre morrer mais tarde, mas não abandones o teu imperador.” É em A Princesa Errante, da grande Kinuyo Tanaka, e será possível vê-lo hoje, dia 13 de Fevereiro de 2024, no auditório da BLCS.



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