quinta-feira, 8 de fevereiro de 2024

Uwasa no onna (1954) de Kenji Mizoguchi



por António Cruz Mendes

No mês de Fevereiro, vamos passar um novo ciclo de filmes consagrados a Kinuyo Tanaka. No primeiro, na sua condição de actriz, desta vez num filme de Mizoguchi; nos seguintes, A Princesa Errante, Mulheres da Noite e Senhora Ogin, na de realizadora. Não por acaso, todos eles têm mulheres como protagonistas. 
 
A Mulher de quem se Fala foi o último dos dezassete filmes que Kinuyo Tanaka fez com Mizoguchi. Dele se diz que foi um filme “mal-amado” pelo próprio realizador, que embirrou com os argumentistas (“uma merda de história, sem interesse”) e o considerou como “um compasso de espera” que precedeu as obras-primas que se lhe seguiram. Recorde-se que, ainda em 1954, realizou O Intendente Sanshô e Os Amantes Crucificados. Mas, o facto do filme que exibimos hoje não se encontrar à altura destes ou de outros dos seus melhores filmes, não significa que estejamos na presença de uma obra depreciável. Parece-me mesmo notável a sequência onde Yukiko se apercebe de que Matoba, com quem se prepara para ir viver para Tóquio era, afinal, o amante da sua mãe, alguém que explorava os seus sentimentos para conseguir o dinheiro que necessita para abrir uma clínica. O filme atinge, então, o seu climax quando as personagens deste triângulo amoroso percorrem os espaços labirínticos da casa, que podemos ver como a expressão plástica da teia de enganos onde Hatsuko e Yukiko se enredaram, ora surpreendendo conversas que lhes revelam a verdade, ora isolando-se para decidir o rumo das suas vidas. 
 
Kinuyo Tanaka interpreta em A Mulher de quem se Fala a figura de uma dona de uma casa de gueixas. Aparentemente, é uma pessoa dura, que gere o seu negócio de uma forma pragmática. Porém, alimenta um sonho de amor. Foi casada pelos pais com um desconhecido, mas tem ainda a esperança de o poder encontrar na companhia de Matoba. Essa ilusão vai ser posta à prova quando assiste a uma peça de teatro que satiriza os amores de uma velha por um homem mais jovem. 
 
Mizoguchi frequentava aquelas tradicionais “casas de prazer” e a sua irmã mais velha foi vendida pelo seu pai para ser explorada como uma gueixa. Talvez por esse motivo e também porque desaprovava a forma como o seu pai tratava a sua mãe, o tema da condição feminina vai ser recorrente na filmografia de Mizoguchi. Nos filmes realizados por Kinuyo Tanaka, ele vai ser dominante. 
 
O filme inicia-se com a chegada de Yukiko a casa da mãe e as primeiras imagens mostram-nos que ela se encontra ali como um corpo estranho. As gueixas usam quimono, uma maquilhagem pesada e penteados tradicionais. Yukiko, com uma postura discreta, roupas ocidentais e cabelo curto, faz-nos lembrar uma Audrey Hepburn deslocada dos EUA para um outro tempo e espaço. Pertence, como nota uma das gueixas, a uma “outra classe”. Enoja-a a boçalidade dos clientes da casa da sua mãe, muitas vezes embriagados, e a forma como as raparigas se deixam usar por eles. Isola-se no seu quarto e sofre quando pensa que o dinheiro que lhe permitiu estudar teve origem no negócio da sua mãe. 
 
Mas, a sua perspectiva começa alterar-se quando Usugumo adoece. Começa, então, a vê-las como pessoas dignas da sua afeição. No bordel, viram-se reduzidas a meros objectos do desejo masculino, mas continuam a ser fiéis aos seus deveres familiares e sujeitos dos seus próprios sonhos. Foi o seu desejo de amor que levou Kisaragi a fugir com um cliente que apenas a pretendia explorar. E, quando Chiyo lhe pede para a aceitar como gueixa, substituindo a sua irmã, porque só assim poderá ajudar o seu pai, doente, compreende que aquela profissão pode ser, por vezes, uma solução para a miséria a que se viram condenadas. 
 
Por fim, desfeitos os seus sonhos de regressar aos estudos em Tóquio e de casar com Matoba, é Yukiko que substitui a mãe na gerência do negócio. O pragmatismo impôs-se ao seu idealismo, as velhas tradições ao sonho de novos tempos. Na cena final, uma gueixa apresenta-se ao olhar submisso de Chiyo, a jovem e ingénua camponesa, magnificamente adereçada, um objecto de luxo, uma soberba oferta destinada a um cliente mais endinheirado. E pergunta: “Até quando, haverá necessidade de raparigas como nós?”



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