quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024

Ogin-sama (1962) de Kinuyo Tanaka



por Alexandra Barros

No século XVI, o Japão vive um período de grande instabilidade política. Dividido em centenas de territórios feudais (daimiados[1]) o país está mergulhado em guerras entre dáimios[2]. O xogum Toyotomi Hideyoshi procura unificar o país, mas os dáimios convertidos ao cristianismo representam uma ameaça à hierarquia social tradicional, fortemente ligada à religião xintoísta e cuja figura suprema (equivalente ao “Papa” cristão) é o Imperador. 

Takayama Ukon, dáimio e samurai cristão, é um nobre ostracizado pelo xogum e tornado alvo da sua perseguição. Ukon mantém uma forte e longa amizade com Sen Rikyû, famoso mestre da Cerimónia do Chá, com quem estudou as sofisticadas artes do ritual. Nessa altura, conheceu Ogin, filha adoptiva de Rikyû. Ogin alimenta desde então uma intensa e obstinada paixão por Ukon, mas ele é casado e muito devoto. 

A história do amor proibido entre Ogin e Ukon é o fio condutor do filme, mas nessa história cruzam-se outras linhas: a própria História do Japão, questões de fé e a identidade e cultura nipónicas. Tal como em filmes anteriores, a presença de elementos culturais e históricos da sociedade japonesa não é mera decoração. É através destes elementos que a realizadora expressa reflexões, preocupações, posicionamentos e estados de alma, tanto das personagens como próprios. Aliás, Tanaka está entranhada nas mais notáveis personagens dos seus filmes. O que é da primeira derrama-se nas segundas; interligam- se, confluem, confundem-se. 

Em Para Sempre Mulher, filme que fechou o primeiro ciclo que dedicámos a Tanaka, a realizadora deu um lugar central à poesia tanka, estilo clássico da literatura japonesa. Agora, neste seu sexto e último filme, esse lugar cabe à Cerimónia do Chá, ritual de grande importância na cultura tradicional japonesa. Kinuyo Tanaka respeita os tempos da cerimónia e dedica grande atenção às suas particularidades: gestos, objectos, significados. Serve-se dessa tradição para colocar em confronto duas visões e formas de estar no mundo. De um lado, o humanismo, simplicidade e sintonia com as leis da natureza de Rikyû; do outro, o despotismo, crueldade, presunção e vaidade ostensiva do xogum. A opulenta sala de chá de ouro de Hideyoshi ou a escolha criteriosa de convidados para a cerimónia do chá de Rikyû são particularmente eloquentes. 

Senhora Ogin contém, além do olhar para a identidade nipónica, outros assuntos recorrentes nas obras da realizadora: a condição e (sobretudo) a sexualidade feminina, casamentos arranjados, romances proibidos, mulheres que recusam conformar-se às convenções sociais e procuram viver de acordo com as suas convicções ou vontade individual. Partilha ainda, com o já referido Para Sempre Mulher, a atenção aos detalhes e o simbolismo associado a objectos, gestos, lugares e paisagens. Além dos objectos envolvidos na Cerimónia do Chá, uma cruz e um leque expressam, em diversos momentos, sentimentos não verbalizados ou acções que adivinhamos, mas a que não assistimos. A cruz, que vemos inicialmente no pescoço de Ukon, será transferida pelo mesmo para Ogin, “amarrando-a” à abstinência sexual e à fidelidade aos mandamentos cristãos. Ogin, porém, reiteradamente rejeitada por Ukon, virá a arrancar violentamente a cruz do pescoço. Mais do que às boas-venturas celestiais, Ogin aspira à felicidade terrena. Mais tarde, uma outra cruz caída no chão, revelará o que Kinuyo Tanaka decide deixar fora de campo. 

Tal como os objectos, também a luz, as cores e os trajes estão carregados de forte simbolismo, espelhando emoções ou antevendo destinos. Visualmente, o filme é belíssimo: admiráveis cores e efeitos de luz, paisagens notáveis, jardins meticulosamente concebidos, interiores minimalistas sofisticadamente apurados, esplêndidos quimonos. 

O uso da luz é especialmente simbólico numa cena premonitória do filme. Ogin assiste ao “calvário” de uma rapariga, que será crucificada por não se ter submetido aos desejos de um dáimio. A serenidade que transparece no rosto da rapariga impressiona Ogin que, num momento de epifania, decide tomar o controlo do seu próprio destino. A morte de Cristo na cruz é denominada Paixão e é vista como um exemplo supremo de amor altruísta. Jesus escolheu voluntariamente sofrer e morrer na cruz para salvar a humanidade e reconciliá-la com Deus, seu Pai. Morte voluntária, paixão, e amor altruísta fecham a história de Ogin. Ela escolhe a morte para salvar o pai; para não se submeter a um homem que não deseja e que despreza; para se manter fiel a uma inabalável, ainda que impossível paixão. Ogin morre, enfim, sob o signo da sua audaz fúria de viver[3].

[1] Daimiado - território governado por um dáimio.
[2] Dáimio - Senhor feudal, possuidor de terras e líder de hostes militares. Os dáimios, sob a dependência do xogum, controlaram grande parte do território do Japão, num modelo de governo que se manteve vigente entre cerca do século X até à segunda metade do século XIX. (Fonte: infopedia.pt)
[3] Fúria de Viver – Filme de Nicholas Ray, já apresentado pelo Lucky Star, sobre um grupo de jovens à procura do seu lugar num mundo de grande violência física e psicológica e, principalmente, absurdo. Voltamos a este grande realizador no próximo mês, com um ciclo que lhe é inteiramente dedicado.



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