quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

Onna bakari no yoru (1961) de Kinuyo Tanaka



por Estela Cosme

Como se pode escapar ao passado quando ele é ilegal? Como se pode refazer uma vida que o estado considera imoral? As mulheres que lideram o centro de reabilitação de Shiragiku parecem pensar que é através do trabalho árduo, submetendo as ex-prostitutas a tarefas domésticas e manuais que visam transformar as suas vidas, afastando-as assim da profissão que estão agora proibidas de exercer. A lei implementada em 1957 surgiu do boom que a atividade teve no Japão durante a Segunda Guerra Mundial, levando à pressão da sociedade para legislar medidas de proteção e reabilitação para as trabalhadoras, evitando a sua persistente exploração. Contudo, ao perder a sua única forma de sustento, estas mulheres não têm alternativa a não ser submeter-se a estes centros corretivos e aprender a distanciar-se de uma vida criminal. Mas a adaptação não é minimamente fácil pois fora do seu reformatório a sociedade continua a julgá-las e a desdenhar as suas tentativas de conversão. É Kuniko, a protagonista de Mulheres da Noite, quem descobre isso repetidamente, levando-a a um destino turbulento e amargo. 

A profissão mais velha do mundo é também aquela que mais dá que falar. Debatida pela sua moralidade (ou falta dela), não é de surpreender que seja retratada no cinema de forma tão variada, do mais banal ao mais sóbrio (isto quando não é adereço para as mulheres na vida de protagonistas masculinos). A romantização da prostituta Vivian em Um Sonho de Mulher (1990) e a glamourização de Satine em Moulin Rouge! (2001) em nada representam as realidades das profissionais do sexo. A inocente Iris de Taxi Driver (1976) existe quase apenas para alimentar o delírio do protagonista que decide salvá-la. Já Séverine de A Bela de Dia (1967) leva uma vida dupla, na qual encontra na prostituição uma libertação das suas fantasias sexuais e dos seus problemas matrimoniais. Bella Baxter no recente Pobres Criaturas (2023) vê na atividade uma continuação da sua exploração do mundo e do seu interior feminino. No anterior ciclo de Fassbinder, vimos como a protagonista de Lola (1981) aproveita a sua profissão para manipular as pessoas à sua volta. Quase todas elas apresentam algum grau de influência que as permite progredir social ou economicamente ou até ter algum proveito pessoal, romântico ou sexual. Perante estas representações ilusórias, as mulheres de Tanaka surgem como uma verdadeira antítese e talvez por isso seja um filme tão doloroso de presenciar, embora seja um antecessor a todos os aqui mencionados. 

Este filme foi escrito por Sumie Tanaka (adaptando um romance de Masako Yana) e certamente não será surpresa descobrir que também foi a guionista de Para Sempre Mulher (1955) de Kinuyo Tanaka, talvez o filme mais perturbador da realizadora até este. Todas as suas obras são centradas em mulheres, com vertente feminista, mas os dois filmes que fez com Sumie Tanaka são-no de forma mais vincada. Já tínhamos também assistido ao retrato de prostitutas em Carta de Amor (1953), mas este é apenas o ponto de partida para explorar o trágico romance entre os protagonistas. Certamente não é tão gráfico e realista na forma como retrata as trabalhadoras, sendo o seu contexto histórico muito diferente. Mulheres da Noite surge uns meros quatro anos após a implementação da lei anti-prostituição japonesa e tanto realizadora como escritora certamente detetaram uma urgência em retratar a nova realidade. O resultado é ferozmente comovente e talvez seja a lição mais empática que Tanaka nos ilustra. 

Kuniko não é uma personagem livre de defeitos. Afinal, ela reverte para os seus velhos costumes como forma de escapar à humilhação da sua primeira patroa, seduzindo sem remorsos o seu marido influenciável. Cansada de se esconder, no seu seguinte emprego decide assumir quem foi, uma honestidade que a aliena das suas novas colegas de trabalho. Kuniko rejeita os seus pedidos de prostituir-se e como tal vingam-se nela fisicamente. A violência ilustrada é de tal magnitude que se torna um tormento assistir à sua brutalização, sendo o momento de mutilação para além de agonizante. A agressão é ainda perpetrada por outras mulheres semelhantes a ela, que se julgam dignas de imputar e executar a Kuniko o castigo mais horrendo. Numa cena realizada de forma sucinta mas altamente eficaz, Tanaka roga-nos que não sejamos indiferentes aos infortúnios que acodem a mulheres como Kuniko. 

Já as cenas em que vemos Kuniko no seu terceiro emprego parecem etéreas, como se estivéssemos a ver outro filme, aliviados de ver Kuniko rodeada por filas e filas de flores na qual surge um novo amor, delicado e fugaz após tanto sofrimento. Contudo, é bom demais para durar e o passado volta a assombrá-la mais uma vez quando descobre que ela e o seu amado não podem casar, uma vez mais pelos seus crimes imorais. Por momentos pensamos que isto a levou a regredir para o lugar onde começou mas respiramos de alívio quando a vemos numa praia, com uma rede às costas, bem longe do seu passado, quer recente quer distante. Ela agora é uma ama, profissão japonesa de pescadores de pérolas e mariscos, uma humilde profissão para quem ainda anseia recomeçar outra vez. Esta é a sua quarta tentativa. 

Talvez seja aqui que o seu passado possa ser finalmente lavado, expurgado, um renascer assegurado como o sol que nasce todas as manhãs sobre o mar em que agora mergulha. Talvez aqui se aperceba que uma mulher tem sempre o poder de se reconstruir, uma e outra vez. E a vontade de uma mulher resiliente nunca ninguém pode ilegalizar.



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