terça-feira, 19 de novembro de 2024

Black Midnight (1949) de Budd Boetticher



por João Palhares

(...) mas o velho respondeu apenas que era inútil falar de um mundo onde não existissem cavalos, pois Deus não permitiria tal coisa.” 

Cormac McCarthy, in «All the Pretty Horses». 

Por meados dos anos 30 do século XX, oitenta e cinco por cento dos cinemas norte-americanos apresentava sessões duplas. Era também uma altura em que praticamente dois terços da população do país ia ao cinema todas as semanas. Qualquer coisa como setenta e cinco milhões de pessoas, se o conseguirmos imaginar. As salas eram exploradas pelos grandes estúdios, como a MGM ou a Warner Brothers, o que quer dizer que estes controlavam os meios de produção, distribuição e exibição, todo o espectro da actividade cinematográfica, garantindo sempre uma sala para todos os seus filmes. Quando a segunda sessão se tornou uma necessidade por vontade do público, que nesses anos dependia do cinema quase como único entretenimento, abriu-se todo um novo mercado para a produção de filmes. Os grandes estúdios não conseguiam dar vazão à imensa procura de cinema, nem queriam relegar as suas grandes produções à segunda parte de uma sessão, portanto foram-se criando pequenas unidades nos estúdios e foram nascendo pequenas produtoras como a Republic Pictures, a Grand National Films, Inc, a Monogram Pictures e a Eagle- Lion Films, dedicadas a produzir filmes pequenos orçamentados entre 12,500 a 500.000 dólares (embora às vezes também se aventurassem nas grandes produções) que podiam fazer um pequeno lucro nas bilheteiras. E assim nasceu o filme de série B. Não um mau filme ou um filme barato, que talvez seja o que hoje mais se associe à expressão, mas um filme pensado como segunda parte para uma sessão e produzido neste contexto alargado que se tentou aqui descrever. 

Estes pequenos filmes tinham perto de sessenta minutos e inseriam-se em géneros americanos populares como o western, o musical e o policial. Eram rodados numa semana, preparados e terminados em cerca de seis. Para se poupar no orçamento, eram filmados ao ar livre ou em cenários mínimos. Para se poupar no tempo, condição não negociável porque no dia seguinte faziam-se as cenas que já se tinham predeterminado, podia haver entre sessenta a oitenta mudanças de posições de câmara e de equipamento de luz por dia. Utilizavam-se retro-projecções e imagens de arquivo na montagem, às vezes de forma muito inventiva. Se os guiões instruíssem que um actor abrisse uma porta, entrasse numa sala e acendesse um cigarro, os produtores corrigiam a cena colocando a personagem já na sala com o cigarro acesso. Os colaboradores eram atribuídos pelo estúdio, havendo alguma margem para a escolha do director de fotografia pelo realizador, sendo também os guiões atribuídos a quem estivesse disponível, embora quem já tivesse algum sucesso pudesse beneficiar de maiores orçamentos, escolher o material e até trabalhá-lo com mais tempo. Havia realizadores tão prolíficos que tinham de criar pseudónimos para continuar a fazer filmes. Restrições várias à parte, algumas delas já enumeradas, o realizador tinha toda a liberdade para experimentar o seu ofício durante a rodagem, fosse com enquadramentos fora do comum ou diálogos entre a luz e a sombra que faziam da própria pobreza de meios um dado narrativo. 

Este esquema das coisas[1], que durou cerca de duas décadas, foi produtivo para a maior parte dos envolvidos, dos criadores aos investidores. O pioneiro americano Allan Dwan, que desde o início do século vinte tinha trabalhado com todas as metragens e orçamentos, acabou a carreira na série B, onde devido às constrições acabou por inventar de novo o cinema numa série de filmes produzidos por Benedict Bogeaus nos anos cinquenta. Entre os grandes cultores da série B, e que nunca deixaram as suas fileiras, estão Kurt Newmann, George Sherman, Joseph H. Lewis e o enorme Edgar G. Ulmer, cujos talentos e ensinamentos não deixam de nos pasmar e ainda não foram totalmente estudados e compreendidos até aos dias de hoje. Os estúdios da chamada “Poverty Row” também foram importantes para iniciar certos cineastas no ofício, ajudá- los a entrar nos grandes estúdios, que estavam sempre interessados em novos talentos. Foi onde começaram Edward Dmytryk, Jacques Tourneur, Anthony Mann, Phil Karlson, Robert Wise, Richard Fleischer, Don Siegel e, chegando finalmente ao que nos interessa, Budd Boettcher, que nesses anos assinava ainda “Oscar Boetticher, Jr.” para não irritar o pai, que odiava cinema. 

Antes de realizar Black Midnight, Budd Boetticher trabalhou no Hal Roach Studios, depois na Columbia, onde foi consultor técnico de Rouben Mamoulian em Sangue e Arena e mais tarde assistente de realização de Charles Vidor em The Desperadoes e Cover Girl. Não creditado, realizou os últimos dois dias e os primeiros dois dias de rodagem de dois filmes de Lew Landers, Submarine Raider e U-Boat Prisoner. Assinou o primeiro filme, One Misterious Night, que foi estreado em Portugal com o título de O Diamante Roubado, em 1944, aos 28 anos. “Eu suspeito que as pessoas compravam muitas pipocas quando os meus filmes apareciam,” escreveu ele na sua auto-biografia[2]. “Fosse como fosse, Harry Cohn certificou-se que eu tinha os melhores operadores de câmara da velha guarda. Era suposto eles estarem lá para me ajudar, mas descobri cedo que eles estavam lá para me mostrar aquilo que sabiam e o quanto eu estava enganado em relação a tudo o que me propunha a realizar. Não me interpretem mal, eles eram todos uns cavalheiros. Mas eu era jovem, e verde como a erva, e presunçoso, e portanto eu e os meus idosos operadores de câmara nunca avançámos realmente ao nível de "amigalhaços". Eu inventei um sistema que funcionava. Quando um deles me questionava em relação a um plano que eu tinha pedido, eu simplesmente abanava a cabeça, dava-lhe uma palmadinha no braço, e dizia: "Não percebes mesmo o que é que eu estou a tentar fazer, pois não?" Depois virava-lhe as costas. Claro que a maior parte do tempo eles estavam certos e eu estava errado, e sentia isso. Mas estar errado como realizador de cinema pode- nos custar um naco de prestígio numa pressinha. Portanto fingi. Uns anos mais tarde um apresentador da televisão perguntou-me quando é que me tinha apercebido ao certo de que era um cineasta de pleno direito. Eu disse-lhe que foi logo a seguir ao meu décimo filme. Mas, com os diabos, eu fingi mesmo aqueles primeiros cinco com montes de falsa confiança.” 

Só não discordamos de Boetticher por puro desconhecimento dos seus primeiros cinco filmes, mas já descrevemos o sétimo, Escape in the Fog, como uma bizarria fascinante e inventiva regada a pesadelos e nevoeiros. O décimo, Behind Locked Doors, é um policial fabuloso em que um detective privado, contratado por uma jornalista, se infiltra como doente num asilo de loucos. Foi feito para a Eagle-Lion Films, em 1948, quinze anos antes de Shock Corridor de Samuel Fuller, grande obra com um ponto de partida muito semelhante. E o filme seguinte é Black Midnight, primeiro dos dois que fez com o jovem Roddy McDowall para a Monogram Pictures. McDowall interpreta Scott, um miúdo que vive com um homem que todos tratam por “Uncle Bill” e cujo filho fugiu há algum tempo para lugar incerto, farto da vida na quinta do pai. Sabemos isto desde os primeiros momentos do filme, depois de um primeiro plano fabuloso em que a câmara acompanha o “Uncle Bill” da cozinha até ao quarto de Scott, para o acordar, e depois Scott até à cozinha, para tomar o pequeno-almoço. Deslocado desde o início, seja por se sentir um mero substituto do filho de Bill ou por sentir também já o peso do trabalho de todos os dias, que ainda assim continua a realizar afincadamente, Scott vai-se afeiçoar a um cavalo selvagem trazido pelo filho de Bill, Daniel, que regressa de forma tão misteriosa como tinha partido, enquadrado pelos pés enquanto se aproxima do pai durante a festa organizada pela Sra. Baxter, primeiro sinal de uma tensão latente que continuará ao longo do filme e só se resolverá em pleno mesmo no final. O cavalo chama-se “Black Midnight”, é ele que dá o nome ao filme, e Scott deve ver nele algo de si, algo do seu sentido de isolamento no seio daquela comunidade. Quando Daniel decide que quer abater o cavalo, que não se deixa domar por ninguém e se mostra agressivo e perigoso para com as pessoas, Scott chega-se à frente e oferece todas as suas poupanças para ficar com ele e o tentar cavalgar. Não se deixa demover dessa missão nem quando Cindy, a filha da Sra. Baxter e prometida de Scott desde criança, parece favorecer os avanços de Daniel, nem quando o “Uncle Bill” parece tomar o lado do filho e lhe quer tirar o cavalo nos últimos momentos da narrativa. Numa sociedade e numa cultura que sempre favoreceu a ainda favorece os laços de sangue, não será um dado insignificante que Budd Boetticher tenha sido adoptado depois da morte dos pais quase imediatamente a seguir ao seu nascimento, pois não é nada comum ver um filme, americano ou não, em que a odisseia de uma criança adoptada em busca de respostas e propósito seja o tema central. Esse propósito vai ser “Black Midnight”, o cavalo negro que não se dá com ninguém a não ser com a ovelha negra da família Jordan. E é o laço que esses dois criam que resolverá todas as tensões deste filme, da reconciliação entre pai e filhos aos votos de amor renovados das duas crianças prometidas, outrora selado com um coração gravado nas rochas, particularmente evidente na cena em que o cavalo de Scott encosta o focinho à égua de Cindy e ele consegue finalmente cavalgar o seu cavalo negro, havendo ainda tempo para um confronto com um puma que ameaça “Midnight” e acelera o entendimento para a vida entre Scott e o “Uncle Bill”, agora sim o seu pai verdadeiro. Absolutamente admirável, absolutamente tocante para uma obra com 66 minutos apenas. 

Repare-se ainda nas belas sequências de planos que mostram Scott nas suas tarefas de todos os dias, sacrificando o seu tempo com Cindy e “Midnight” para tratar das galinhas e dos campos. Na cena da festa da Sra. Baxter, a certa altura uma das poucas aliadas de Scott, junto ao xerife, ouve-se a canção popular americana, “Cindy”, que se conhecia de Rio Bravo de Howard Hawks, realizado onze anos depois. O final do filme foi rodado nos Alabama Hills, na Califórnia, onde Boetticher rodaria mais tarde 7 Homens para Matar, The Tall T, Ride Lonesome e Comanche Station com Randolph Scott. Mas isso, como se costuma dizer, é uma história para outro dia. 
 
[1] Leia-se o livro fabuloso organizado por Todd McCarthy e Charles Flynn, «Kings of the Bs – Working within the Hollywood System», E. P. Dutton & Co., Inc., Nova Iorque, 1975. É a fonte de quase toda a informação recolhida para este texto sobre a organização da indústria norte-americana de cinema durante os anos trinta e quarenta. 
[2] «When in Disgrace», Neville Publishing Inc., Santa Barbara, Califórnia, 1989.



domingo, 17 de novembro de 2024

371ª sessão: dia 19 de Novembro (Terça-Feira), às 21h30


Esta terça-feira, o cineclube exibe filme rural de Budd Boetticher 
 
Em Novembro, o Lucky Star – Cineclube de Braga associa-se ao Cineclube Gardunha para trazer ao auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva um ciclo pensado pelo crítico e programador de cinema norte-americano Andy Rector. Com dois filmes de Phil Karlson e dois de Budd Boetticher, o novo ciclo intitula-se “Rural American Films - Filmes rurais americanos do período clássico”. 
 
Sobre o ciclo, Andy Rector escreveu que “a riqueza destes filmes está, obviamente, não apenas na estória dos seus Cavalos e da terra - não são filmes da natureza - mas na sociedade e nas culturas, na crueldade e nos amores, da humanidade em torno deles. Como Boetticher afirma abertamente em My Kingdom For, é “uma história visual dos nossos animais” e nós somos todos seus protegidos.” 

Esta terça à noite, será a vez de Budd Boetticher e de Black Midnight, filme produzido em 1949 pela Eagle Lion Films e com Roddy McDowall no papel de um jovem que assume como missão domar um cavalo selvagem, chamado “Black Midnight”, pelo qual oferece todas as suas poupanças. Foi rodado nos Alabama Hills, na Califórnia, onde Boetticher faria mais tarde 7 Homens para Matar, The Tall T, Ride Lonesome e Comanche Station com o actor e produtor Randolph Scott.
 
“Este é o primeiro filme de Boetticher rodado em Lone Pine, na Califórnia,” escreve Rector sobre Black Midnight, “uma paisagem que iria explorar ainda mais e imortalizar nos seus westerns Ranown com Rudolph Scott dos anos 50. O local, com as suas rochas salientes e batidas pelo vento (assemelhando-se geologicamente à Serra da Gardunha) e cenário do gigantesco Monte Whitney, comporta a simples estória de um rapaz órfão a amadurecer como jovem ajudante de fazenda (Roddy McDowell de O Vale Era Verde e Killer Shark de Boetticher) que está apaixonado pela vizinha e a tentar resgatar e domar um cavalo demasiado selvagem da eutanásia pelas mãos de um velho amigo da família que se corrompeu.” 
 
“O filme transborda das habituais cadências descontraídas e sem juízos de Boetticher,” continua. “Mesmo os seus homens maus são irmãos de boa índole –– permanecendo, em toda esta cordialidade, uma dura peça moral (para as personagens, não para nós, como numa fábula). Um filme doce sobre a vida comum (é impossível imaginar o assassínio, mesmo os cadáveres fora de quadro de Tall T aqui), Black Midnight deve ser um dos filmes a preto e branco mais verdes já feitos, certamente o mais verdejante em Lone Pine, com sequências empolgantes a céu aberto e puros voos a cavalo.” 
 
As sessões do Lucky Star ocorrem no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva às terças-feiras às 21h30. Durante o mês de Novembro a entrada é livre para todo o público.

Até Terça-Feira!

terça-feira, 12 de novembro de 2024

Thunderhoof (1948) de Phil Karlson



por António Cruz Mendes

Thunderhoof é um western bastante atípico. Não vamos nele encontrar nenhuma referência à saga da “conquista do oeste”, a essa epopeia lendária onde se confrontam o bem e o mal, a lei e a desordem, a civilização e a selvajaria, que o cinema divulgou e ainda hoje informa o olhar dos EUA sobre o seu passado e explica algumas posturas presentes. 

Em vez disso, num território desolado, paisagens agrestes, terras áridas apenas percorridas pelo vento, onde condições mínimas de sobrevivência parecem permanentemente ameaçadas, desenrola-se um drama edipiano. 

Em cena, apenas três actores. Quatro, talvez, se considerarmos o protagonismo de Thunderhoof, um magnífico cavalo selvagem, um dos poucos que ainda percorrem aquelas terras de ninguém, figura de um simbolismo complexo que terá um papel determinante na trama da narrativa. 

Kid precisa de “matar o pai”, o velho Scotty que, há muitos anos, lhe salvou a vida quando o retirou das areias movediças onde se afundava. Uma história mais do que uma vez evocada, mas que é também uma alusão à pobreza e ao desamparo em que, presumivelmente, se encontrava the kid, “o miúdo”, quando Scotty o colocou sob a sua protecção. 

Mas, Scotty é ele próprio a areia movediça que impede Kid de se libertar e de se realizar como homem. A fuga é a sua primeira opção. Ela parece-lhe imperiosa, tanto mais que Scotty se encontra agora casado com Margarita, o seu amor de juventude. Contudo, essa saída está-lhe vedada. Scotty obriga-o a ficar, precisa dele para capturar Thunderhoof. 

Por ele, Scotty está disposto a arriscar a vida. Aquele cavalo que “meio México” tenta em vão capturar é a pedra basilar sobre a qual assentará o rancho onde vai construir um lar na companhia de Margarita. 

Margarita, também ela resgatada por Scotty de uma situação de pobreza, vê-se assim no centro de um triângulo amoroso. Não saberá Scotty da paixão de Kid? Com certeza que sim mas, em face disso, confiante no seu poder, adopta uma atitude sarcástica e desafiadora. O desejo do rapaz de nada vale ao lado da sua vontade. A tensão existente entre os dois rapidamente se exacerba, levando-os a confrontar-se numa luta travada à beira de um abismo. 

Numa cena ocorrida na casa abandonada, milagrosamente encontrada no meio de nenhures, equipada com tudo o que poderiam almejar, Kid, agora limpo e barbeado, toca guitarra e Margarita canta. Ambos fantasiam uma futura existência, longe de Scotty, de ranchos e de cavalos, numa idealizada Nova Orleães, cenário de festas e alegria. Scotty, no quarto ao lado, doente e com uma perna partida, ouve-os. Os seus sonhos e os de Kid só se poderão realizar com a morte de um deles. 

O final, muito deus ex machina, parece-nos forçado. Mas, em 1948, num filme produzido nos EUA, um desfecho menos conforme com a moral dominante teria que se confrontar com sérios obstáculos. Phil Karlson não soube ou, mais provavelmente, não quis travar essa luta. Ainda assim, deixou-nos a história magnífica de um “desejo selvagem” que, como os cascos de um cavalo que resiste a ser domesticado, ressoa “como um trovão” nas terras áridas e desertas do México.



sábado, 9 de novembro de 2024

370ª sessão: dia 12 de Novembro (Terça-Feira), às 21h30


Décima sétima longa-metragem de Karlson para ver na biblioteca 

Em Novembro, o Lucky Star – Cineclube de Braga associa-se ao Cineclube Gardunha para trazer ao auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva um ciclo pensado pelo crítico e programador de cinema norte-americano Andy Rector. Com dois filmes de Phil Karlson e dois de Budd Boetticher, o novo ciclo intitula-se “Rural American Films - Filmes rurais americanos do período clássico”. 
 
“Filmes rurais americanos sob o tema de 'For a Horse’ (“Por um Cavalo”) –– é um canto aparentemente pequeno do cinema mas com grandes implicações,” escreve Andy Rector sobre o ciclo, “representado nesta série por dois modestos realizadores americanos, Phil Karlson (1908-1982) e Budd Boetticher (1916-2001), que fizeram cada um vários filmes que lidavam de forma directa e reverente com as éguas e garanhões, potros e potrancas que inundaram o ecrã desde o nascimento do cinema.” 
 
Thunderhoof, do ano de 1948, é a próxima sessão deste ciclo, marcada para a próxima terça-feira à noite às 21h30. O filme centra-se numa caça a um cavalo selvagem através da fronteira pelo deserto mexicano e no triângulo amoroso que se forma durante a travessia entre o fazendeiro do Texas Scotty Mason, a sua esposa Margarita e o empregado, chamado “The Kid”. 
 
"Três personagens – um cowboy com uma certa idade, a sua jovem mulher e outro cowboy que o primeiro educou como se fosse o seu irmão mais novo – procuram o mítico Thunderhoof, um cavalo selvagem inabordável," conta-nos Jacques Lourcelles no seu Dictionnaire du Cinéma. "Acabam por encontrá-lo bastante rápido, capturam-no e, a partir daí, começam as suas dificuldades... Datando dos começos da carreira de Phil Karlson, esta odisseia minúscula é um western formalmente muito puro, um estudo de movimento em plena natureza, uma fuga para cinco cavalos e três humanos. Não sabemos se a aspereza dos locais, a beleza das paisagens e do animal cativo servem de contraponto aos problemas – um bocado fastidiosos pela sua complexidade – das personagens, ou se é o contrário. De qualquer das formas, parece que aos olhos de Karlson os cavalos são mais importantes, mais sábios e mais simples do que os homens; em todo o caso, aqui eles são mais numerosos, o que mesmo num western não é habitual!"
 
Discorrendo sobre os primeiros filmes de Karlson, o crítico espanhol Jesús Cortés escreveu que “dessas mais de vinte obras, por vezes de localização árdua e sempre com nula ou mesmo má fama, há as que têm grande interesse ou são prometedoras e não faltam as realmente valiosas e a ter em conta atrás das melhores da década seguinte. E depois há Thunderhoof." 
 
As sessões do Lucky Star ocorrem no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva às terças-feiras às 21h30. Durante o mês de Novembro a entrada é livre para todo o público.

Até Terça!

quarta-feira, 6 de novembro de 2024

Black Gold (1947) de Phil Karlson



por José Oliveira

Black Gold, o filme que hoje iremos vez, inaugura um ciclo programado em conjunto com o historiador e programador Andy Rector, idealmente concebido para se realizar em zonas rurais e preferencialmente ao ar livre. Filmes rurais americanos, assim chamamos aos quatro filmes do ciclo, realizados no período clássico do cinema por dois realizadores injustiçados porque ultra-talentosos: Phil Karlson e Budd Boetticher. 

Andy Rector define o ciclo assim, referindo-se somente a Karlson: «Ao fazer filmes no escalão económico mais baixo dos estúdios de Hollywood dos anos 30 e 40, com a Monogram Pictures e depois com a Allied Artists, Phil Karlson redescobre os chamados Great American Outdoor Film, numa certa linhagem com D.W. Griffith, Allan Dwan, Francis Ford e William S. Hart, filmando em locais reais e com um público rural em mente...» 

Para começar, fixemo-nos nesta jóia preciosa de 1947, que só precisa de ser mais vista para ser considerada um dos grandes filmes da história do cinema americano. 

A história: Charley Eagle, um nativo americano, adota um rapaz chinês logo depois dos brancos matarem o seu pai. Chegados ao rancho de Charley e da sua mulher, formam uma família. Pai e filho criam um cavalo, que se volve um grande cavalo de corrida, e a princípio são enganados pelos brancos. É então descoberto petróleo nas terras de Charley. Ele vende-as, fica aleijado num acidente industrial, fica rico e odeia ser rico. O rapaz chinês torna-se jóquei para que possam correr independentes. A partir daí, buscam uma redenção superior. 

Andy deixa-nos muitas dicas que permitem iluminar este filme tão simples e cristalino, abrindo ao mesmo tempo para toda uma complexidade e riqueza inomináveis: 
 
  • Trata-se de uma obra do chamado período progressista de Karlson, que inclui outros títulos complicados de ver, como The Big Cat ou Louisiana; o aspecto multicultural é sublime e em acordo com a vida; toda a história que acompanhamos é baseada no famoso cavalo de corridas dos anos 1920, chamado Black Gold e criado por Rosa M. Hoots, um membro da nação Osage, essa mesma que se tornou multimilionária depois da descoberta de petróleo nas suas terras, e que é a mesma nação (com a mesma história central do petróleo) do último filme de Martin Scorsese, Assassinos Da Lua Das Flores; Anthony Quinn, que por causa do petróleo fica aleijado, tem uma atuação lenta, com um falar estranho, «afetando um inglês estranho»; e Katherine DeMille, que faz de esposa deste, filha adotada de Cecil B. DeMille, entrega-nos uma atuação contida, como se estivesse a carregar a dor de uma vida, neste filme de órfãos errantes; e num período e num contexto em que os cineastas aceitavam muitos trabalho por dinheiro, indiferentes, Black Gold foi para Karlson um dos seus filmes mais pessoais, tendo filmado pelas diversas estações do ano, com interrupções para fazer outros seis filmes!, captando assim a mudança da paisagem e da natureza. E termina com um detalhe grandioso e fulcral: «um dos únicos filmes com crédito para um "Consultor Índio Americano": Nippo T. Strongheart.» 


Estamos perante um conto de bons sentimentos, onde se aprende muitas coisas, nomeadamente coisas práticas, e também a ver as coisas e os acontecimentos de diferentes perspetivas, de um ponto de vista outro que não o moldado pela cultura nefasta, apressada e argentária. Entre infinitas maravilhas, destaco: 

  • Charley Eagle, um ser selvagem, um puro índio, equiparável aos possantes cavalos e às forças intraváveis e intratáveis da natureza, desculpa-se assim à sua esposa, Sarah Eagle, por muitas vezes abandonar o lar comum: «as paredes encolhem e sinto necessidade das estrelas e do vento da noite.» 
  • Um ser puro que viu a família dizimada e que mesmo assim esqueceu a raiva, expurgou-a do seu coração; e que acredita que o seu país, os Estados Unidos da América, é grande e que nele podem viver brancos, índios, chineses... 
  • O mundo idílico no rancho que nos é apresentado logo após o índio Charley conhecer o chinês Davey, que também acabou de perder o pai e logo toda a família nuclear: os dois agacham-se para beber água puríssima de um charco luminoso, a esposa adivinha o regresso do marido muito tempo depois dele ter partido e tem a comida ao lume, os dois adultos percebem que adotaram um filho, e a mulher, na anuição final e uterina, confirma a decisão ao universo. 
  • Seguidamente o Pai ensina o Filho a perseguir o rasto dos animais e a reconhecê-los, faz-lhe saber da diferença entre formigas de montanha e formigas do pátio da escola, retirando uma moral primeira, mostra-lhe como funciona o exato relógio do sol, e transmite-lhe a importância fundadora das plantas; ensina-o ainda que o medo deve ser sempre olhado de frente. 
  • E, no seguimento disto, mostra-lhe um grande e esquecido segredo: a terra onde incontáveis índios foram dizimados e enterrados, fazendo-lhe ver que não há que sentir tristeza, num espaço que é tão sagrado como uma igreja, uma catedral. 
  • Charley é um inocente, um selvagem inocente, como Nicholas Ray percebeu ao ver este filme, chamando-o depois para a sua “obra homónima” (The Savage Innocents), alguém que consegue transformar o mal e a sua potência nefasta em bem, como no caso da ameaça do petróleo ou das falcatruas dos apostadores de cavalos, que facilmente o enganam. 
  • O caso da escola, da educação, e os procedimentos: a professora é tão boa, tão tolerante, tão disponível, que vai buscar Davey a casa, convence-o da necessidade da educação, do convívio e da fraternidade; tão boa que ama o magnata do petróleo que vai furar a quinta idílica de Charley, e que tal como o amado acredita que o dinheiro pode ser bom para essa família; e assim Phil Karlson, o realizador, não julga ninguém. 
  • Nesse encontro em casa está presente um juiz tão severo como compreensivo, muito parecido com esse interpretado por Spencer Tracy em Young America de Frank Borzage; e em Black Gold conheceremos imensos seres Borzageanos; juiz esse que esquece burocracias e constitui uma família que já o era e será para sempre, percebendo a total harmonia entre eles e o mundo harmónico em que se encontra. 
  • Inevitavelmente, o mal: o petróleo que suja as plantas selvagens e livres e as janelas do lar, e que só se torna aceitável para Charley por que lhe permitirá comprar outro cavalo, um puro-sangue, que permitirá perpetuar a têmpera de Black Hope. 
  • A nascença do potro redentor que permitirá a Charley vencer a “corrida das corridas”, não para contentamento seu, mas para redimir todos os nativos; e, nessa cena transcendente, com a morte de Hope, nasce e renasce outra esperança, Black Gold, e novamente o mal é transformado em bem. 
  • Cena que rima com a morte de Charley, no vislumbre e no sentimento da continuidade de todas as coisas, de uma inevitabilidade natural que tem de ser vista positivamente, em sereno estado de graça: outra morte sacra, enleada por cânticos além-túmulo, de todos os índios que passaram por aquela terra e dos que possivelmente passarão; morte vivida entre estrelas e ventos da noite. 
  • O efeito dos nomes dos cavalos em consonância com os acontecimentos, e em relação ao poder e ao mundo do dinheiro causado pelo petróleo: a esperança que é negra (Black Hope) e o ouro que é negro (Black Gold), e como tudo isso se interlaça, cruza, liga, religa, desfaz e refaz com os sucedidos e o significativo. Novamente, o nome a perdoar ao adjetivo, a qualidade a desculpar o facto, a reversibilidade que se gera conforme o olhar. Uma pedagogia da dialética.
  • A comicidade da grande festa em que Charley, a mulher e o filho são reis. A cumplicidade com a empregada indígena, os cinquenta anos que um homem tem de esperar para se habituar a sapatos de luxo, a vergonha e a dignidade tanto dos donos da casa como dos outrora rivais. 
  • A corrida final, em que de uma só vez se redime as muitas mortes dos protagonistas, dos seus povos, das diferentes raças, crenças, credos, unificando-se tudo na nação dos sentimentos elevados; e onde outra pessoa extraordinariamente boa, o treinador dos cavalos e amigo primário de Charley, diz ao miúdo que quando o animal estiver a ficar com medo, só tem de falar com ele, ternamente, com confiança. 
  • «Quero agradecer a todos os que estão aqui... ...e àquele que aqui não está.», é o discurso da esposa depois da vitória. Um mundo perfeito.



sábado, 2 de novembro de 2024

369ª sessão: dia 5 de Novembro (Terça-Feira), às 21h30


Phil Karlson e o seu filme rural esta semana no cineclube 
 
Em Novembro, o Lucky Star – Cineclube de Braga associa-se ao Cineclube Gardunha para trazer ao auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva um ciclo pensado pelo crítico e programador de cinema norte-americano Andy Rector. Com dois filmes de Phil Karlson e dois de Budd Boetticher, o novo ciclo intitula-se “Rural American Films - Filmes rurais americanos do período clássico”. 
 
Andy Rector descreve os filmes deste ciclo não como westerns, “mas filmes rurais, destinados a um público rural, filmes que re-descobriram as imagens em movimento dos “Grandes Exteriores Americanos" do início do cinema (numa certa linhagem com Griffith, Dwan, Walsh, Francis Ford, William S. Hart), sob a insígnia e os recursos duros do filme pequeno, o filme de série B nos cartazes.” 
 
Interpretado por Anthony Quinn, num dos seus primeiros papéis principais, e realizado por Phil Karlson em 1947, Black Gold será o primeiro filme do ciclo, a exibir na próxima terça-feira às 21h30. Também protagonizado por Katherine DeMille, filha adoptiva de Cecil B. DeMille, o filme foi rodado em exteriores ao longo de um ano para capturar a terra e as cores das estações com fidelidade. 
 
Sobre o filme e a produtora Monogram, Phil Karlson disse que “tive uma oportunidade para fazer lá um dos primeiros filmes, penso eu, em que se fazia uma afirmação social no ecrã. Eu nunca tinha conhecido este tipo e fui falar com ele. Nesses dias ele não era uma estrela, estava a interpretar papéis de índios, e era o Anthony Quinn. Então fui ter com o Tony Quinn e convenci-o a ele e à mulher a participar em Black Gold.” 
 
“Eu fiz uma afirmação tão forte que todas as nações índias a apanharam,” continuava Karlson. “Eles perceberam aquilo que estávamos ali a dizer. O indivíduo comum que ia ver uma longa-metragem naqueles dias ia para ver entretenimento. Nós não fazíamos afirmações, fazíamos polícias e ladrões e heróis e vilões. Mas olhar para algo e ver a verdade, para variar, era qualquer coisa de pouco habitual nesses dias.” 

Rector diz que Black Gold é “um dos poucos filmes com um crédito a um "consultor índio americano": Nippo T. Strongheart. Rodado em Cinecolor, um processo de cinema a cores mais barato que envelheceu de forma mais nobre que o Technicolor dominante, e não apenas por resistir ao desvanecimento.” 
 
As sessões do Lucky Star ocorrem no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva às terças-feiras às 21h30. Durante o mês de Novembro a entrada é livre para todo o público.

Até Terça-Feira!

sexta-feira, 1 de novembro de 2024

Em Novembro, no Lucky Star:




Juunt Pastaza Entsari (2022) de Inês Teixeira Alves



por António Cruz Mendes

Quando Inês T. Alves chegou à aldeia de Suwa, nas margens do rio Pastaza, ainda não sabia que ia realizar um filme. Não conhecia aquela comunidade. Aliás, era a primeira vez que visitava a Amazónia. Decidiu visitá-la porque, di-lo numa entrevista a Paulo Portugal, publicada no site Esquerda.net, “tinha vontade de estar só a viver e a aprender”. E assim foi durante o primeiro mês da sua estadia na aldeia Achuar, que se encontrava muito isolada, mas aberta a contactos com o exterior. Aí chegada, Inês, que já conhecia a sua professora primária, não teve dificuldade em relacionar-se com os seus habitantes e, sobretudo, com as suas crianças. 

Já havia feito um mestrado em cinema documental na University of Arts, em Londres, realizado algumas curtas-metragens, e trazia consigo uma câmara de filmar com um microfone incorporado. A dada altura, começou a registar imagens de tudo o que via. Impressionou-a sobretudo a autonomia dos mais novos, a liberdade com que viviam e a facilidade com que se relacionavam com a natureza. E foi das imagens que documentavam o seu quotidiano que acabou por nascer este filme. 

É claro que sabemos que os adultos estão na aldeia, mas eles surgem somente numa das últimas cenas do filme, talvez apenas para comprovar a sua presença. Todo o protagonismo cabe às crianças. Vemo-las livres, divertidas e amigas, a recolher frutos na floresta, a pescar, a cozinhar, a tomar banho no rio, a inventar os seus próprios brinquedos e jogos. 

Algumas das suas brincadeiras não serão muito diferentes das dos miúdos “ocidentais” e, desde logo, com eles, partilham do seu interesse pelos smartphones. Contudo, a electricidade e a internet chegaram há pouco tempo à aldeia e uma das questões que o filme pode levantar é a de saber que impacto poderá isso vir a ter no seu futuro. Por um lado, as novas tecnologias abrem-lhes outras possibilidades de contactar com um mundo exterior; por outro, todos sabemos que o telemóvel também pode ser um instrumento alienante. Para já, e segundo a realizadora, que voltou a visitar essa aldeia cinco anos depois de realizar Águas do Pastaza, e apesar de se conhecerem projectos de abertura de estradas de molde a facilitar o comércio dos madeireiros e da haver homens da aldeia a trabalhar fora do seu território, não parece que o seu quotidiano se tenha alterado substancialmente. 

Sabemos pelas imagens gravadas de uma conversa de Inês T. Alves com o público de uma projecção de Águas do Pastaza programada pelo Cineclube Vilafranquense, que, numa comunidade onde ainda não havia televisão, Inês T. Alves exibiu alguns filmes que trouxe consigo (documentários, filmes do Charlot e filmes de animação) e que isso despertou grande curiosidade e interesse, nomeadamente entre as crianças, que começaram logo, elas próprias, a gravar imagens com os seus smartphones. Inês permitiu-lhes mesmo experimentar a sua própria câmara, o que, mais tarde, passou a evitar por recomendação dos adultos, com medo de que as crianças a estragassem. 

A beleza da selva amazónica, do rio, das próprias crianças, transmite-nos uma ideia de harmonia, de paz e serenidade. Mas, não nos dará este filme uma visão algo idealizada da vida destas crianças? Nunca há, na sua vida, conflitos, zangas, momentos de tristeza, doenças, dor? Inês T. Alves, na entrevista já aqui referida, admite a hipótese duma visão algo romântica, utópica. Por outro lado, diz nunca ter sido seu objectivo fazer um documentário etnográfico. O filme nasceu do seu “breve encontro” com a vida dos miúdos que filmou e, de certa forma, também da maneira como elas reagiram ao facto de se verem filmadas: algumas das cenas de Águas de Pastaza foram sugeridas pelas próprias crianças que as protagonizaram. É, portanto, de todo merecida a galeria de retratos, dos seus rostos sorridentes, por vezes um pouco envergonhados, outras vezes inquisidores, com que termina o filme. 

A realizadora assume, tanto quanto possível, uma posição de observadora, deixando aos espectadores o cuidado de interpretarem o resultado das filmagens. No entanto, a citação de Agostinho da Silva que nos surge logo no início do filme (“As qualidades infantis deveriam conservar-se até à morte, como qualidades distintamente humanas – as da imaginação, em vez do saber, do jogo, em vez do trabalho, da totalidade, em vez da separação”) oferece-nos uma pista para uma possível leitura: Há características que geralmente se associam às crianças, mas que fazem parte da nossa essência como seres humanos. Algo que nas sociedades contemporâneas se poderá estar a perder, mas que importa saber resgatar.