"O meu filme não é sobre o Vietname... o meu filme é o Vietname", foram as míticas palavras de um apocalíptico Francis Ford Coppola ao apresentar Apocalypse Now no Festival de Cannes de 1980.
Indo buscar inspiração ao terrífico ensaio sobre a obsessão e a loucura puramente humanas do Heart of Darkness de Joseph Conrad, John Milius, o argumentista, fundiu a escuridão dos finais do século XIX com a guerra do Vietname e só apontou ao ridículo de todas as guerras passadas e futuras.
“O horror... o horror...” vai dizendo o Coronel Curtz, incomparavelmente possuído por Marlon Brando, que o Willard de Martin Sheen terá de terminar.
E tal como a tortuosa viagem e a impossível missão que iremos acompanhar o que está em causa é a perpétua contradição e irresolução da nossa condição. Coppola, que de uma assentada convocou todos os gestos e lições do cinema que é Cinema – de Griffith a Eisenstein, de Stroheim a Gance – meteu igualmente tudo em risco – tanto a sua própria vida e a de muita gente que participou na rodagem como a carreira de realizador – para que o Apocalipse não fosse só o tema da empreitada mas a matéria mesma e o fogo central que tudo anima.
Na nossa próxima sessão veremos a versão Redux, apresentada em 2001, que foi ainda mais ao fundo do vórtice da demência e cravou de nostalgia a visão fugaz dos Paraísos Perdidos de que tanto nos falou Camões como Milton. Hélder Castro, artista, professor e campeão da vida, vem a Braga para nos falar de um dos filmes da sua vida.
Walter Murch, mago do som e da montagem que trabalhou várias vezes com Coppola, falou com Michael Ondaatje sobre a nova montagem do filme, dizendo que "havia um problema [a propósito de Apocalypse Now Redux]: a partida da plantação francesa fora filmada uma só vez e mostrava o cais intacto. Não havia uma partida com um cais em ruínas. Não podíamos chegar com o cais em ruínas e partir com ele intacto! Logo, se utilizássemos o cais em ruínas para entrar na sequência, não se podia voltar a sair de lá.
"Então, ao investigar os rushes, encontrei um take com Martin Sheen e Aurore Clément, quando ela sai da cama, nua, e fecha o mosquiteiro que rodeia a cama. Havia algo de belo e de evocador, no seu perfil contra o mosquiteiro, e pensei: 'Ela parece um fantasma, e o mosquiteiro é como o nevoeiro'. Foi então que fiz a ligação. Ao começar a sequência da plantação francesa [...]. Quando o nevoeiro se instala, as ruínas da plantação dão a sensação de que Willard e a tripulação voltaram atrás no tempo. E o filme pode mergulhar nesse jantar espectral, que o Francis achava buñueliano, com pessoas movidas por paixões políticas no início dos anos 50, um reflexo do compromisso americano no Vietname quinze anos mais tarde. Na versão original, Willard apanhava a jovem através do mosquiteiro, faziam amor e reencontrávamo-los de manhã. Mas, na nossa versão, a imagem de Aurore dissolve-se progressivamente num fundido encadeado e ficamos com a silhueta desencarnada desta jovem, a pairar num fundo branco como o leite. Então, percebemos que estamos de volta ao barco, de onde tínhamos partido. Quando descobri esta transição, que não estava no guião, algo se desbloqueou. Senti que começava a assimilar a linguagem desta nova versão."
Jean Douchet, farol absoluto nos tempos em que vivemos, escreveu sobre a nova versão e do que ela acrescentou ao original, a propósito de uma exibição em Cannes, de "regresso ao festival para os Cahiers, quarenta anos depois. Já não para fazer a cobertura crítica do evento inteiro, mas para vir mergulhar na multidão, durante vinte e quatro horas, por ocasião dos cinquenta anos da revista. A última vez foi em '63. Os Pássaros abriram a competição, mas sem concorrer. Lembro-me, como diria Pérec, de bocas, de queixadas grandes como as dos críticos e jornalistas autorizados. Nós, só o éramos em aparência, tentados demais pelo amor ao cinema para entrar no jogo estúpido das conferências de imprensa. "Sr. Hitchcock, Os Pássaros, são a bomba atómica?" "Sr. Hitchcock, acha que o público vai assistir a uma história tão inverosímil?" "Sr. Hitchcock, porque é que Os Pássaros atacam? Porquê esta violência? Love birds, porquê? Porquê, porquê, porquê?" Com a sua fleuma britânica, o pobre Alfred tentava responder com humor a esta enchente de disparates, mas lutava visivelmente por esconder a sua decepção e uma agressividade latente para com tal congregação. Um jovem, acho que era dos Cahiers, veio em seu socorro. "Sr. Hitchcock, eu fiquei com a impressão que o comportamento dos humanos, principalmente de Melanie, que se julgam proprietários do mundo, é o único responsável pela cólera dos céus." A cara do genial Alfred iluminou-se de repente. "É isso, absolutamente isso!" E só deixa este pequeno desconhecido de uma revista mensal modesta (15 000 números na altura), embora já ilustre, fazer-lhe perguntas diante de um público aturdido e perturbado. Depois da conferência, Hitchcock chamou o miúdo para o convidar a vir para Hollywood e o entrevistar durante três dias. Isto, era Cannes, e eram os Cahiers (os amarelos, de preferência). E pronto. No entanto, jurei a mim próprio: absolutamente nada de "no meu tempo..." e outros "uh! lá! lá!". Portanto, sigamos para os dias de hoje. E dividamos a história em dois. Depois do apocalipse de Hitch, o Apocalypse Now. Isso cai bem, uma vez que o now é duplo. '79 e '01. Primeira vez: versão mutilada mas com Palma de Ouro. Mudança de cenário e inversão dos papéis, agora. São os Cahiers, saídos de um longo teste de questionamento do papel do mundo no cinema e vice versa, que se fazem de difíceis. É verdade que depois de 64 a revista seguiu um rumo desenfreado à mais pequena modernidade, porque há moda na modernidade, na direcção do que havia de mais avançado no ar intelectual do tempo. E mergulhou naturalmente, depois de 68, na mais opaca salmoura maoísta. O cinema afundava-se em discursos ditos políticos patéticos. E todo o cinema realmente moderno do próprio começo dos seventies, Fassbinder, Jean Eustache e essa nova vaga americana que explodia neste momento, foi desdenhado ou soberbamente ignorado. Os Cahiers de então, em relação a alguém como De Palma, adoptaram a mesma atitude condescendente e depreciativa, enfim, que a crítica banal dos anos 60 em relação a Hitchcock. Mesmo Daney ou Bonitzer, quer dizer, ainda precisavam, em 79, de se mostrar reticentes face ao filme de Coppola. Porque não há nenhum de nós que, em nome da teoria e das ideias, não tenha, num artigo, traído a verdade das suas emoções e da sua sensibilidade.
E tal como a tortuosa viagem e a impossível missão que iremos acompanhar o que está em causa é a perpétua contradição e irresolução da nossa condição. Coppola, que de uma assentada convocou todos os gestos e lições do cinema que é Cinema – de Griffith a Eisenstein, de Stroheim a Gance – meteu igualmente tudo em risco – tanto a sua própria vida e a de muita gente que participou na rodagem como a carreira de realizador – para que o Apocalipse não fosse só o tema da empreitada mas a matéria mesma e o fogo central que tudo anima.
Na nossa próxima sessão veremos a versão Redux, apresentada em 2001, que foi ainda mais ao fundo do vórtice da demência e cravou de nostalgia a visão fugaz dos Paraísos Perdidos de que tanto nos falou Camões como Milton. Hélder Castro, artista, professor e campeão da vida, vem a Braga para nos falar de um dos filmes da sua vida.
Walter Murch, mago do som e da montagem que trabalhou várias vezes com Coppola, falou com Michael Ondaatje sobre a nova montagem do filme, dizendo que "havia um problema [a propósito de Apocalypse Now Redux]: a partida da plantação francesa fora filmada uma só vez e mostrava o cais intacto. Não havia uma partida com um cais em ruínas. Não podíamos chegar com o cais em ruínas e partir com ele intacto! Logo, se utilizássemos o cais em ruínas para entrar na sequência, não se podia voltar a sair de lá.
"Então, ao investigar os rushes, encontrei um take com Martin Sheen e Aurore Clément, quando ela sai da cama, nua, e fecha o mosquiteiro que rodeia a cama. Havia algo de belo e de evocador, no seu perfil contra o mosquiteiro, e pensei: 'Ela parece um fantasma, e o mosquiteiro é como o nevoeiro'. Foi então que fiz a ligação. Ao começar a sequência da plantação francesa [...]. Quando o nevoeiro se instala, as ruínas da plantação dão a sensação de que Willard e a tripulação voltaram atrás no tempo. E o filme pode mergulhar nesse jantar espectral, que o Francis achava buñueliano, com pessoas movidas por paixões políticas no início dos anos 50, um reflexo do compromisso americano no Vietname quinze anos mais tarde. Na versão original, Willard apanhava a jovem através do mosquiteiro, faziam amor e reencontrávamo-los de manhã. Mas, na nossa versão, a imagem de Aurore dissolve-se progressivamente num fundido encadeado e ficamos com a silhueta desencarnada desta jovem, a pairar num fundo branco como o leite. Então, percebemos que estamos de volta ao barco, de onde tínhamos partido. Quando descobri esta transição, que não estava no guião, algo se desbloqueou. Senti que começava a assimilar a linguagem desta nova versão."
Jean Douchet, farol absoluto nos tempos em que vivemos, escreveu sobre a nova versão e do que ela acrescentou ao original, a propósito de uma exibição em Cannes, de "regresso ao festival para os Cahiers, quarenta anos depois. Já não para fazer a cobertura crítica do evento inteiro, mas para vir mergulhar na multidão, durante vinte e quatro horas, por ocasião dos cinquenta anos da revista. A última vez foi em '63. Os Pássaros abriram a competição, mas sem concorrer. Lembro-me, como diria Pérec, de bocas, de queixadas grandes como as dos críticos e jornalistas autorizados. Nós, só o éramos em aparência, tentados demais pelo amor ao cinema para entrar no jogo estúpido das conferências de imprensa. "Sr. Hitchcock, Os Pássaros, são a bomba atómica?" "Sr. Hitchcock, acha que o público vai assistir a uma história tão inverosímil?" "Sr. Hitchcock, porque é que Os Pássaros atacam? Porquê esta violência? Love birds, porquê? Porquê, porquê, porquê?" Com a sua fleuma britânica, o pobre Alfred tentava responder com humor a esta enchente de disparates, mas lutava visivelmente por esconder a sua decepção e uma agressividade latente para com tal congregação. Um jovem, acho que era dos Cahiers, veio em seu socorro. "Sr. Hitchcock, eu fiquei com a impressão que o comportamento dos humanos, principalmente de Melanie, que se julgam proprietários do mundo, é o único responsável pela cólera dos céus." A cara do genial Alfred iluminou-se de repente. "É isso, absolutamente isso!" E só deixa este pequeno desconhecido de uma revista mensal modesta (15 000 números na altura), embora já ilustre, fazer-lhe perguntas diante de um público aturdido e perturbado. Depois da conferência, Hitchcock chamou o miúdo para o convidar a vir para Hollywood e o entrevistar durante três dias. Isto, era Cannes, e eram os Cahiers (os amarelos, de preferência). E pronto. No entanto, jurei a mim próprio: absolutamente nada de "no meu tempo..." e outros "uh! lá! lá!". Portanto, sigamos para os dias de hoje. E dividamos a história em dois. Depois do apocalipse de Hitch, o Apocalypse Now. Isso cai bem, uma vez que o now é duplo. '79 e '01. Primeira vez: versão mutilada mas com Palma de Ouro. Mudança de cenário e inversão dos papéis, agora. São os Cahiers, saídos de um longo teste de questionamento do papel do mundo no cinema e vice versa, que se fazem de difíceis. É verdade que depois de 64 a revista seguiu um rumo desenfreado à mais pequena modernidade, porque há moda na modernidade, na direcção do que havia de mais avançado no ar intelectual do tempo. E mergulhou naturalmente, depois de 68, na mais opaca salmoura maoísta. O cinema afundava-se em discursos ditos políticos patéticos. E todo o cinema realmente moderno do próprio começo dos seventies, Fassbinder, Jean Eustache e essa nova vaga americana que explodia neste momento, foi desdenhado ou soberbamente ignorado. Os Cahiers de então, em relação a alguém como De Palma, adoptaram a mesma atitude condescendente e depreciativa, enfim, que a crítica banal dos anos 60 em relação a Hitchcock. Mesmo Daney ou Bonitzer, quer dizer, ainda precisavam, em 79, de se mostrar reticentes face ao filme de Coppola. Porque não há nenhum de nós que, em nome da teoria e das ideias, não tenha, num artigo, traído a verdade das suas emoções e da sua sensibilidade.
"As reservas sobre o filme nessa altura, visavam - é escusado dizer -, o olhar político que Coppola mostrou sobre a guerra do Vietname. Embora fosse suficiente sentir - neste caso concreto e prosaicamente, ver bem e entender o filme - para captar o discurso real do cineasta. Sim, o filme foi concebido sobre o ponto de vista americano, já que toda a potência de fogo da mise en scène demonstrava a futilidade de uma nação cujo imaginário foi falsificado para sempre pela representação ideológica de um mundo que Hollywood fabricou durante décadas. Sim, foi Hollywood que caiu sobre a selva como, vinte anos antes, tinham caído os pássaros sobre Bodega Bay. O filme não tinha equívoco nem mal-entendido nenhum. É impossível não apanhar a ressonância nazi da famosa cena do bombardeamento de napalm. Especialmente quando Wagner e as suas Valquírias caricaturavam ao limite o uso hollywoodiano à Tiomkin da música para filmes. É impossível não ver o desembarque na linha da frente do show-biz, com as suas girls a vibrar em frente a boys frustrados, como uma metáfora dos estragos mentais provocados pela fábrica dos sonhos. Metáfora que Kubrick vai resumir, até à lobotomia, no último plano de Full Metal Jacket. Não ouvir nem ver Apocalypse Now era evidente má vontade. A versão de 2001 põe definitivamente fim às reticências. Está tudo claro, agora. A apresentação da cena dos colonos franceses diz explicitamente o que não se desejava perceber na primeira versão de Cannes. Aliás, essa cena é tratada de forma magnífica. Tem a mesma força dramática que as outras. Mas ela extrai a sua necessidade sobretudo por fortalecer e cimentar a estrutura narrativa e por provar, de novo ("par (le) neuf" no original, trocadilho entre "novo" e "nove", como em "prova dos nove"), que foi mesmo um filme político que Coppola realizou. Reafirmar - agora que o filme encontrou a sua verdadeira duração - a minha opinião de antanho de que Apocalypse Now é uma obra-prima indiscutível apraz-me ainda mais sabendo que, quarenta anos depois dos meus relatórios de Cannes, me posso exprimir num novo suporte. Há qualquer coisa de jovem ("jaune"), e até de amarelo ("jeune"), nos cahiersducinema.com"
Até Terça-Feira!
Até Terça-Feira!
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