por João Palhares
Snake Eyes acaba e começa com planos-sequência. Melhor dizendo, começa com um falso plano-sequência e acaba com um plano-sequência. Esse primeiro "plano-sequência" introduz-nos na acção, é a representação distanciada do acontecimento que vai contaminar todo o filme: a morte do ministro da defesa. Segundo Brian De Palma, o realizador deste filme, há três ou quatro cortes muito subtis (pessoalmente só reparei em dois, deixo o exercício para quem os quiser contar: parece que são quatro ou cinco, os planos), no trajecto do personagem de Nicolas Cage, Rick Santoro. Mas a minúcia a lidar com a logística (centenas de figurantes, percursos complicados dos actores) não deixa de surpreender. Começo por escrever isto porque a comoção que se segue só tem o poder que tem por causa da fluidez, diria até que acalmia absoluta, desses primeiros minutos. Quando a multidão desata a correr em pânico, nós sentimos a transição profundamente. De facto, atravessa-nos um grande desalento, mais intelectual, mais teórico, e enquanto os cortes se seguem uns atrás dos outros a grande velocidade, também estamos completamente desnorteados.
O que se segue, ou o cerne do filme, é a dissecação obsessiva (narrativa, do som, da montagem) daqueles cinco primeiros planos, ou daquele falso plano. Repetem-se os “Tyler!” efusivos de Santoro, o “Here comes the pain!” e o tiro final, constantemente.
Rick Santoro é o otário que investiga o assassinato, percebendo as coisas aos poucos. E De Palma parece que adequa o trabalho de câmara e de montagem ao Q.I. da personagem. Slow motions, split screens, escalas em sintonia, música; nunca a arte de De Palma, parece-me, fez tanto sentido num filme seu, confundem-se a percepção e a montagem, constantemente.
E porque sempre achei que há um momento em filmes brilhantes em que percebemos que são brilhantes, falo da sequência do flashback de Tyler, o boxer: confrontado por Santoro pelo K.O. duvidoso, conta a sua história, uma das primeiras peças do puzzle. A dificuldade em ser vencido por tão fraco adversário, está à nora; vêm então os acordes belíssimos da banda-sonora de Ryuchi Sakamoto. Tudo lentíssimo, contemplativo. Retenha-se o plano do homem vencido (talvez o mais belo de toda a obra de De Palma), perfeitamente consciente da sua ruína e do seu destino, pausa necessária da profusão de reviravoltas e de informação – tudo isto prova que De Palma também é humano, o momento é belíssimo, mas não se força a isso, flui extraordinariamente.
Ao ver o resto do filme, conforme Santoro vai decifrando o resto do puzzle, apercebêmo-nos do gozo que deve ter dado a De Palma ter feito o filme, continuando a dividir e a talhar minuciosamente aquele assassinato até às últimas consequências, encontrando novas câmaras e novos pontos de vista, novos ângulos e novos testemunhos – a história pela imagem – habilidosamente. Reviravolta atrás de reviravolta. Até ao plano final, com Santoro e Julia (onde andas tu, Carla Gugino?).
Dos chamados “filmes com twist” (e para este filme acho que isso pouco interessa), só gosto dos de De Palma.
texto publicado no terceiro número da revista FOCO, com algumas modificações para esta folha
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