quinta-feira, 1 de junho de 2017

Cop Land (1997) de James Mangold



por João Palhares

Sylvester Stallone nasceu a 6 de Julho de 1946 em Nova Iorque, no bairro de Hell's Kitchen (onde no ano seguinte, Kazan, Cheryl Crawford, Robert Lewis e Anna Sokolow, fundariam o Actors Studio). Devido a complicações durante o parto, os médicos parteiros tiveram que usar fórcepses e cortaram um nervo do pequeno Stallone, provocando uma paralisia na parte inferior esquerda da sua cara que lhe danificou o rosto e a fala - algo com que teve que lidar desde muito novo e mesmo depois de se ter tornado actor, porque houve sempre quem usasse isso para o atacar de forma cobarde a si e ao seu trabalho. Aos cinco anos mudou-se com a família para Maryland, no estado de Washington. Aos 11 anos, com o divórcio dos pais, passou a viver um ano com cada um deles, à vez, até a mãe se casar de novo e se mudar com ela para Filadélfia, onde passou os últimos anos da adolescência. Expulso várias vezes de escolas por desacatos e vandalismo acabou por ser enviado pela mãe para o American College da Suíça, onde teve que improvisar um negócio de hambúrgueres sem licenças para levar a sua vida. Também safou um príncipe etíope de sarilhos com os colegas, acabando por receber um carro como agradecimento. Vendeu-o e ao fim do segundo ano mudou-se para Miami para estudar Teatro, voltando finalmente a Nova Iorque para tentar a sorte como actor.

Entre trabalhos em part-time como porteiro ou limpador de jaulas de leões no jardim zoológico, Stallone ia a castings atrás de castings enquanto escrevia argumentos, chamando inclusive a atenção de Otto Preminger por algo que tinha escrito sobre os seus dias no liceu suíço. Preminger virou-lhe as costas quando o jovem Stallone lhe pediu uma pechincha pela história e pelo trabalho de re-escrita do guião ("Preminger olhou para mim com tanto desdém, como se dissesse, 'Tu não és um escritor. Nenhum escritor no mundo se vendia só por 70 dólares.'", contou Stallone à Playboy em 1978). Entre finais dos anos 60 e inícios dos 70, bateu no fundo, chegando mesmo a dormir nas ruas e a ter que aceitar um trabalho humilhante por 200 dólares para arranjar sítio em que ficar ("era fazer esse filme ou roubar alguém, porque estava no fim -- mesmo no fim -- da linha. Em vez de fazer algo desesperado, trabalhei dois dias por $200 e tirei-me da estação de autocarros", conta Stallone na mesma entrevista). Depois de entrar como figurante ou em papéis muito pequenos de filmes de Richard Fleischer, Alan J. Pakula, Woody Allen ou Steve Carver e de encabeçar e co-escrever The Lords of Flatbush (um dos filmes favoritos de Vincent Gallo), a vida volta-lhe a fazer das suas e acaba outra vez falido. Com o pouco dinheiro que tem, vai ver um combate entre Muhammad Ali e Chuck Wepner. "(...) Estou ali sentado, a olhar para o público à minha volta, e um drama revela-se. O Wepner é um cavalo de prova que é suposto durar talvez três rondas, para o Ali poder ir cedo para o chuveiro, mas ele aguenta-se. E então, de repente, o Ali cai -- tropeçou -- mas agora o público está a ficar louco! Os olhos de alguns tipos estão a ficar brancos; quero dizer, a multidão está a ficar doida. E lá vem a última ronda, e o Wepner perde finalmente por um TKO. Eu pensei para mim mesmo, 'Isto é drama. Agora a única coisa que tenho de fazer é levar uma personagem até esse ponto e tenho a minha história.'" Foi a génese de Rocky. E o resto é história.

Se se conta a história de Sylvester Stallone é porque ao contrário dos talentos que se revelavam num grande sopro de inspiração e vingavam na indústria ou na arte que praticavam, o seu durou bastante tempo a ser reconhecido e, mesmo depois de reconhecido, voltou a ser questionado uma e outra vez. Foi acontecendo sempre ao longo das décadas e dos anos e continua a acontecer. Depois de ser nomeado para três Oscars e provar ser um artista completo que realizava e interpretava os seus próprios guiões (além de pintar ou cantar, por exemplo, o tema de abertura do seu Paradise Alley). E essa luta e esse seu percurso pessoal arranjaram maneira de se tornar matéria viva de vários dos filmes que interpretou, escreveu ou realizou, partindo do momento em que ninguém acredita em si nem na fúria escondida na sua apatia aparente (divagando: será só coincidência que os romances de David Goodis, imbuídos da sua vida na Filadélfia que é também de Stallone, falem de heróis que escondem sempre e das maneiras mais variadas e complexas uma força animal por baixo de uma postura de completo desânimo e indiferença?) até provar o seu valor à custa de um esforço hercúleo e de outro mundo e cumprir o seu potencial. "Eles não sabem quão esquizóide me posso tornar nem como mudo, às vezes. Sempre fui como uma espécie de camaleão, e os críticos não podem saber isso, porque não viveram comigo durante 32 anos; Eu vivi.", disse Stallone.

É difícil falar do mito ("mito" como verdade fundadora e colectiva, não como engodo - que é como a palavra parece ser usada a maior parte das vezes, nos tempos que correm) que Rocky, Rocky II e First Blood erigiram e provocaram, sobretudo tratando-se de filmes aos quais só se consegue responder com profunda emoção, mas terá sido a própria resistência dos seus pares e dos seus críticos ao seu talento (e nunca dos seus milhões de fãs em todo o mundo, porque depois do sucesso inicial de Rocky nunca deixou de ser uma grande estrela) que permitiu a Stallone ir construíndo esse mito ao longo dos anos sem nunca olhar para trás ("I'm too close to ever go home again", canta Stallone em Paradise Alley), como se cada golpe o tornasse mais forte (continuando, "one step closer, now, with one more fight"). E para não nos encerrarmos nem nos enterrarmos na sociologia, dizemos finalmente que a construção desse mito atingiu mesmo pontos muito altos e deu por vezes origem a belos filmes (alguns com as suas falhas, mas que não abalam a sua enorme força e vitalidade), dos quais retemos principalmente Rocky de John Guilbert Avildsen, Paradise Alley e Rocky II de Stallone, First Blood de Ted Kotcheff, Rocky Balboa de Stallone, Creed de Ryan Coogler (aos quais talvez pudéssemos acrescentar The Lords of Flatbush, Rocky V e John Rambo, se os tivéssemos visto) e o filme que nos interessa para esta sessão, Cop Land de James Mangold.

Para Cop Land, James Mangold também teve que superar os seus preconceitos em relação a Stallone. E superou-os vendo-o a trabalhar em primeira mão, durante as filmagens, sendo esperto o suficiente para usar esse seu choque inicial e essa sua revelação progressiva em proveito do filme, que descreve o mesmo arco (e de tantos outros filmes do actor, como já vimos). Stallone interpreta um xerife surdo de um ouvido há já uns anos, por causa de um salvamento perigoso nas águas do rio que separa a sua cidade fictícia da de Nova Iorque. É responsável por uma dezena de polícias corruptos que moram nessa cidade para exercer influências criminosas do outro lado do rio sem represálias. De forma não muito heróica mas sempre resoluta, a personagem de Stallone indaga e pergunta, "move-se diagonalmente", a conselho do amigo Ray Liotta, provando a si próprio e contra o resto do mundo que o rapaz que salvou essa rapariga de um carro submerso ainda vivia dentro de si.

Dentro deste quadro mais stalloniano, Mangold consegue ainda pagar tributo ao western, através da descrição do xerife sitiado, dos armazéns de água que servem como refúgios fora da cidade ou do apelido Heflin (é como se chama o xerife de Stallone, Frank Heflin), que nos remete para Van Heflin, actor de Wings of the Hawk (Budd Boetticher, 1953), The Raid (Hugo Fregonese, 1954), 3:10 to Yuma (Delmer Daves, 1957) e Gunman's Walk (Phil Karlson, 1958).

Mas o que mais toca e impressiona neste filme, tirando a sequência mais óbvia, pesada e calculada do tiroteio final (ainda assim formalmente justificada por ser descrita sob o ponto de vista do Heflin agora surdo de dois ouvidos), são duas sequências lindíssimas à volta da figura de Stallone. A primeira mostra-o a olhar pela janela para a mulher que depois descobriremos ser a que salvou das águas. Vê a mulher a pousar a tartaruga de peluche da filha no cimo da carrinha e a arrancar sem se aperceber do sucedido. Heflin apercebe-se. Mais à frente vêmo-lo a atravessar a rua e a pegar no boneco, entre os seus outros afazeres do dia. Pouco depois vai a casa dela e entrega-o de surpresa. Esta confessa que se tinha esquecido dele em cima do carro e só se apercebeu quando chegou a casa. Ele responde que "I know. I saw, through my window." Coisa muito simples mas que prova, pelo menos, que há alguma atenção e carinho pelas personagens que se estão a filmar, uma tentativa de fazer entrar as pequenas e belas absurdidades da vida pelas portas ásperas de uma narrativa. Sem calculismos mas a espaços, entre pedaços importantes da trama, passando quase despercebida se não se prestar atenção.

A segunda, e que será dos momentos mais comoventes em filmes de Stallone, é a entrega de "Superboy" (o rapaz perseguido que Heflin quer entregar para testemunhar contra os polícias criminosos) em Nova Iorque. Com a ajuda da personagem de Ray Liotta, Stallone arrasta-se ensanguentado pelo átrio da enorme esquadra rodeada de polícias, agarrando-se ao seu prisioneiro com todas as forças que lhe restam. Robert De Niro, que também entra neste filme, diz-lhe que está tudo bem enquanto Liotta grita que ele não ouve, que lhe rebentaram o outro ouvido, que está totalmente surdo. De Niro agarra no prisioneiro e Stallone vira-se enlouquecido e violento. "It's all right", garante De Niro, olhando-o nos olhos. Sly torce a cabeça e larga o prisioneiro. "It's ok, it's ok. Come on." Stallone olha para Liotta, que lhe diz "Come on, Freddy". Grande plano de Bobby De Niro: "Come on inside." Agarra Stallone pelos braços e leva-o para a esquadra como se dissesse ao miúdo com problemas de fala nascido tão perto do Actors Studio que podia finalmente lá entrar, que ao provar o que quer que quisesse provar nesta altura só provou pela enésima vez que nunca teve nada para provar. A ninguém. E nós choramos.

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