por João Palhares
The Yards é o segundo filme de James Gray, um dos poucos cineastas americanos que ainda vale a pena seguir e que ainda este ano estreou The Lost City of Z, adaptação de um livro de David Grann sobre as explorações de Percy Fawcett com Robert Pattinson, Sienna Miller e Franco Nero. Sempre acreditou no cinema como forma privilegiada de exprimir grandes sentimentos, sendo, além disso, admirador confesso das óperas de Puccini, Wagner ou Charles Gounod. Mas disse que "a palavra "operático" é frequentemente mal usada como se significasse exagerado, quando alguém está emocionado em demasia. E isso faz um prejuízo terrível porque "operático" para mim quer dizer um compromisso e uma crença que são sinceros para com a emoção do momento." E de Little Odessa a Z, Gray não tentou fazer mais nada do que ser "sincero para com a emoção do momento", concentrando todas as suas forças e o seu talento em explorar as grandes emoções e os grandes turbilhões da vida, sim, mas também as mais pequenas manifestações de afecto ou ressentimento. Na sua obra desvenda-se um mundo por olhares, grandes e pequenos gestos, movimentos de câmara entre a luz e os abismos, decisões trágicas no turbilhão do mundo e actores em completo estado de graça, ficando sempre a certeza de que o seu trabalho é só "operático" ou minucioso para potenciar a descoberta e o pensamento - a revelação.
Faz sentido vermos este filme logo a seguir a True Crime, de Clint Eastwood, porque Gray e Eastwood devem ser os únicos cineastas americanos (Todd Field já não faz filmes há uns anos) a tentar fazer evoluir esse género que está para o cinema como a ópera está para a música - o melodrama, também muito mal descrito como "exagerado" ou "com demasiadas emoções" e que não há-de evoluir se se continuarem a celebrar as transposições a régua e esquadro muito irónicas e muito vazias de Todd Haynes, Tom Ford ou Sam Mendes. E apesar do próprio Gray admitir que Scorsese e Francis Ford Coppola são grandes influências para ele, continuo a achar que está mais próximo de Elia Kazan ou de Vincente Minnelli. E talvez especialmente em The Yards, em que se pode pensar tanto em On the Waterfront como no Some Came Running que vimos o ano passado também por esta altura. Também aqui um homem ingénuo se vê obrigado a lutar sozinho contra um grande sistema corrupto (como no filme de Kazan) e também aqui a chegada de um homem a sua casa faz desencadear uma terrível cadeia de acontecimentos (como no filme de Minnelli, que o de Gray também faz lembrar pela interpretação fabulosa de Charlize Theron, tão parecida com a Shirley MacLaine desse filme e de The Apartment de Billy Wilder).
Só que tal como em True Crime (ao qual se podia acrescentar A Perfect World, The Bridges of Madison County, Absolute Power, Blood Work e Mystic River, para não fugirmos muito dos anos noventa), e embora possam acontecer coisas muito semelhantes, nada é mostrado ou contado como se mostrava e contava nos anos cinquenta (que é o que fazem Haynes, Ford e Mendes, com uma pitada de ironia por cima para lhe atribuir a tão necessária "modernidade"). Pense-se na forma como Clint Eastwood termina o seu filme (da montagem paralela entre Beechum e Everett à fabulosa dissolução do plano da mão da mulher de Beechum a bater no vidro com a cena final do filme) ou nas várias cenas do filme de Gray que começam só com o som e ainda com imagens da cena anterior, no uso da música de Gustav Holst (também próximo do que faz Michael Cimino em Year of the Dragon com a música doutro Gustav, Mahler). Para chegar aos mesmos resultados e às mesmas emoções de um filme de Kazan ou de Minnelli é preciso tomar um caminho totalmente diferente. E talvez seja por isso que, como diz Jean Douchet, "os filmes de James Gray, no seu pensamento como na sua expressão, são obras clássicas que reinventam a nossa concepção do classicismo. São, portanto, inteiramente modernos. Com autores como ele, o cinema não morrerá".
A suspensão e a dissolução finais de True Crime talvez sejam o maior atestado disto, um golpe genial e tão eficaz da parte de Eastwood que continua a resultar mesmo vendo o filme pela quarta ou quinta vez. Coisa tão arriscada que podia não ter resultado. Uma ideia pura, cristalina, como só acontece a espaços muito alongados no cinema. Acontece algo parecido com a montagem paralela também já perto do final do filme de Gray, aliada à dedicação absoluta de Joaquin Phoenix e Charlize Theron. É nisto que pensamos quando falamos de revelação. Não é só informação, é fazer-nos acreditar só com imagens e sons que algo pode ser possível (para o bem, no filme de Gray, e para o mal, no filme de Eastwood) quando já sabemos que não é. Acreditar que Erica vai sobreviver, chorar a morte de Beechum. Os acenos de mão tão discretos entre Eastwood e Washington, o dar das mãos de Mark Wahlberg e Faye Dunaway, selos eternos que carregam o peso do mundo. "Um compromisso e uma crença que são sinceros para com a emoção do momento."
Nota final para defender a versão de James Gray de The Yards, sem o final imposto pelos irmãos Weinstein. Foi a que exibimos e é a que não mostra Leo a testemunhar contra a empresa da personagem de James Caan. Sem essa cena, ganha a corrupção engendrando uma maneira de se salvar a si própria pelos seus próprios meios, tornando-se um mal endémico e com anti-corpos. Mas mais importante, ganham outros contornos e outras ramificações o cumprimento final entre Leo e Frank (Caan), o dar das mãos de Leo e da tia (Dunaway) e surgem travellings sobre estaleiros e quartos vazios, que projectam a tragédia no infinito, como num abismo, e nos deixam um grande aperto na garganta. Como se encena uma tragédia no século XXI? The Yards é o melhor filme de James Gray?
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