por José Oliveira
Pouco tempo depois de termos visto Um Mundo Perfeito (1993), eis que Clint Eastwood, porventura o maior dos cineastas vivos, está de volta ao nosso cineclube. E logo com Um Crime Real, uma das obras mais negras e ambíguas da sua carreira, e também das mais menosprezadas. A sessão partiu de uma carta-branca a Daniel Pereira (comparsa do Capitão Napalm no blog O Sabor da Cerveja), que apresentará a sessão em vídeo. Vídeo que, significativamente, e ineditamente, passará no final da projecção. Quando já muita névoa passou pelo ecrã tantas vezes dito demoníaco...
Da raça puramente humana e puramente imperfeita. O acaso, o instinto, a consciência.
True Crime (título original que ainda escurece mais o abismo) ramifica-se todo mal abre, dando-nos o cenário, os intervenientes, motivações e o passado a não colar com o presente. A correnteza ou a torneira sempre aberta na mesma medida que se diz ser o estilo Clint começa logo aí a soluçar. Há um condenado à morte, um caso resolvido, a tragédia da curva da morte e um jornalista de má fama a querer provar que está no caminho certo. E assim o filme seguinte a Midnight in the Garden of Good and Evil vai muito mais fundo nas aparências e localizações do bem e do mal. A cena triste e patética da volta rápida ao zoo com a filha do jornalista de segunda que se quer tornar de primeira para poder dar voltas lentas pode ser o centro da questão moral pois mostra o lado oposto do claro heroísmo e bem da sua cruzada. Clint dorme com as filhas ou as mulheres dos patrões e está-se a borrifar para os deuses e as justiças deste mundo ou dos outros, para o bem e o mal, tem um cheiro que lhe diz que um inocente pode ser morto e decide ir até ao fim em consonância com a sua (falta) de ética. Praticar a coisa certa ou levantar-se da lama e dar a volta lenta no zoo? Raça dos que se queimam no trabalho, no seu modo de vida, por aquilo para que nasceram, na acção; sem chances de constituir uma boa família, mas que mesmo assim querem mostrar que podem.
«Todos mentimos, amigo, eu só o vim aqui escrever», dispara o jornalista ao polícia antes da cena do cheiro. Cheiro que para ele funciona como o Jesus para o preso prestes a morrer. Se cheirar bem, ele está bem. Se cheirar mal, é o inferno. E é esse o móbil que lhe faz exigir ao condenado toda a verdade. Com gente de sobra a assistir, com todo o mundo a assistir, Clint faz depender o bem e o mal desse orgulho, do seu motivo particular. Um acidente levou-o ali e ele atira-se a ele, transformando a curva da morte em curva da vida, o tortuoso no certo, e acabando só depois de ter distribuído a sua prenda no natal.
Ou pode não ser nada disso e tratar-se apenas da transcendente redenção também a todos os humanos resguardada. E estaria certo. Tal como salvou as pessoas certas independentemente dos motivos. Os seus esgares no encontro derradeiro com a mulher que perdeu o neto e ganhou um coração de ouro vêm das entranhas, conectadas com o órgão vital. É a grande questão e a grande dúvida de um imenso tratado de múltiplas leituras. Mas que Clint assuma no final que anda sempre sozinho como o Pai Natal, é amargo demais, depois de ter salvado três ou infinitas vidas. Sem zona, área ou luz de conforto. O peso do bem e do mal... sempre a depender do cheiro... do instinto que também é o tudo ou nada deste cinema. Fica a calma final, rasgando ainda mais para todos os lados.
Lembram-se da acalmia e do percurso para o escuro e para a luz da Angelina Jolie no final de Changeling, do mesmo ambíguo e humanista Clint?
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