terça-feira, 2 de janeiro de 2018

73ª sessão: dia 5 de Janeiro (Sexta-Feira), às 21h30


De Charlie Chaplin já mostramos o Monsieur Verdoux, cometa de todas as ambiguidades e de todas as contradições. Como com todos os grandes artistas, certas ambiguidades e certas contradições podem ser melhor esclarecidas ou contextualizadas à luz de toda a sua obra e portanto inauguramos uma integral das longas-metragens de Chaplin com Luzes da Ribalta, que será a nossa próxima sessão, apresentada em vídeo por Sérgio Alpendre..

O filme com o Calvero interpretado por Chaplin pode ser visto como um regresso às raízes teatrais e inglesas do realizador, mas também como um espelho das suas dúvidas e receios à altura da sua realização, convocando ainda a adivinhação e a futurologia e perfazendo todas as instâncias temporais que nos permitem inaugurar com ele um ciclo Chaplin. Como se de uma porta de entrada para a eternidade se tratasse, e onde recuar e avançar são uma e a mesma coisa.

James Agee, o escritor, jornalista, crítico de cinema e argumentista de filmes de John Huston e Charles Laughton, elogiou os talentos e a aura de Chaplin no artigo essencial a que chamou Comedy's Greatest Era (revista Life, 5 de Setembro de 1949), escrevendo que "antes de Chaplin chegar aos filmes, as pessoas contentavam-se com um par de gags por comédia; ele arrancava alguma espécie de riso a cada segundo. No momento em que começou a trabalhar estabeleceu padrões - e forçou-os continuamente para cima. Qualquer pessoa que tenha visto Chaplin a comer sapatos cozidos como truta de rio em A Quimera do Ouro, ou embaraçado com um apito engolido em Luzes da Cidade, viu a perfeição. No entanto, na maior parte do tempo, Chaplin obtinha os seus risos menos dos gags, ou de os ordenhar em qualquer acepção comum, do que pelo seu génio para o que se pode chamar de inflexão - o atenuamento perfeito e variável das suas atitudes físicas e emocionais em relação ao gag. Por mais engraçadas que sejam as suas convulsões com a cama desmontável, os vislumbres de admiração, expostulação e o desejo desamparado e quase soluçante por vingança que ele lança contra essa máquina infernal ainda são melhores.

"Um erro doloroso e frequente entre principiantes é o de romper a linha cómica com um riso grande demais, e depois uma frustração; ou com um riso fora de tom ou irrelevante. Os mestres conseguiam ornamentar lindamente a linha principal; nunca a perturbavam. Em A Night Out, Chaplin, desmaiado, é arrastado ao longo do corredor pela gola do casaco por um Ben Turpin cambaleante. As biqueiras dele deixam um rasto; está tão inanimado como um trenó. O próprio Turpin está tão bêbado que mal o pode arrastar. Chaplin acorda calmamente, percebe quão bem está a ser servido pelo seu companheiro esforçado, e colhe e aprecia uma flor com um gesto regiamente delicado.

"Na obra de Chaplin estava a melhor pantomima, a emoção mais profunda, a poesia mais rica e mais pungente. Ele podia provavelmente fazer o The American Commonwealth de Bryce em pantomima sem nunca marchar uma sílaba e torná-lo paralisantemente engraçado no meio do negócio. No final de Luzes da Cidade, a rapariga cega que recuperou a vista, graças ao Vagabundo, vê-o pela primeira vez. Ela imaginou-o e anteviu-o como principesco, para não dizer mais; e, a ele, nunca lhe ocorreu seriamente que fosse inadequado. Ela reconhece quem ele possa ser pela sua felicidade tímida, confiante, radiante enquanto ele vem silenciosamente na direcção dela. E ele reconhece-se a si mesmo, pela primeira vez, através das terríveis mudanças na cara dela. A câmara só troca alguns grandes planos tranquilos das emoções que mudam e se intensificam em cada cara. Vê-lo é suficiente para aquecer o coração, e é a melhor parcela de interpretação e o momento mais alto dos filmes."

João Bénard da Costa, maior dos cultores das obras tardias de Chaplin, escreveu sobre Luzes da Ribalta, lembrando que «“só há duas maneiras de ter razão” escreveu algures Fernando Pessoa. “Uma é calarmo-nos, a outra, contradizermo-nos”. Para Chaplin, cujo problema maior, nos anos dificilíssimos que foram da estreia de Monsieur Verdoux (1947) à de Limelight (1952) era ter razão, ou que a sua razão lhe fosse reconhecida, calar-se não era solução, antes era dar razão aos adversários. Só lhe restava contradizer-se. Ou seja, abandonar o anarquismo e o pessimismo que o seu último personagem arvorara e regressar a outra vertente do seu génio: o melodramatismo. Um grande melodrama com todos os ingredientes do mito chaplinesco e que voltasse a dar a ver o Vagabundo (e a dá-lo a ver sob luz total) deve ter-lhe parecido o melhor meio de reconciliar tudo e todos com ele próprio, de se fazer “perdoar” e de se voltar a fazer aceitar.

«Nunca o vi escrito em parte alguma, nem nenhuma declaração (de Chaplin, ou alheia) me autoriza a convicção. Mas só consigo interpretar a escolha de Limelight, depois de filmes sucessivamente mais imbricados com a realidade global que o rodeava (Modern Times, The Great Dictator, Monsieur Verdoux) pela vontade, consciente ou inconsciente, de Chaplin em pôr fim às tempestades que ele próprio (com esses filmes) desencadeara. A cabeça branca de Chaplin, a cabeça branca de Calvero, sempre me pareceram a “bandeira branca” levantada para restabelecer a paz e a harmonia. Aos seus detractores, oferecia-se de corpo inteiro, pela primeira vez sem disfarces nem máscaras, e oferecia uma história que não podia deixar de ser vista como a história da sua vida. Mais ainda: como a história de quarenta anos de espetáculo (circo, vaudeville, teatro e cinema) de que Limelight seria simultaneamente o requiem e o testamento.»

Já Jacques Lourcelles, no Dicionário do Cinema, escreveu que é a "penúltima longa-metragem de Chaplin como intérprete principal. De alguma forma, é o seu testamento espiritual. Chaplin situa a acção em Londres pela altura dos seus começos no cinema (1914), não para contar a sua juventude mas para evocar a velhice de um artista com a mesma idade que ele nos dias de hoje. Esta fusão entre a sua própria juventude e a velhice do seu personagem prepara o terreno, no desenvolvimento da intriga, para a relação que vai existir entre o velho actor e a jovem dançarina, cujo amor e reconhecimento recíprocos expressam o próprio movimento da vida no que tem de mais criativo. Calvero passa o testemunho a Terry para que o espectáculo e a vida continuem. Este grande salto no tempo que Chaplin escolheu fazer trá-lo também de volta a certos estereótipos do melodrama de fim de século que imbuíram uma parte das suas comédias. Em Limelight, eles ocupam o essencial da intriga e invertem assim a proporção de drama e de comédia habitual nos filmes de Chaplin antes de 40. Aqui, é o melodrama que fica com a maior fatia. O pathos inerente ao género permite a Chaplin exprimir a sua filosofia de vida (com aforismos tão impactantes como límpidos), exorcizar enquanto artista o seu medo do insucesso, do esquecimento e da morte, e sobretudo pôr a nu o coração das suas personagens e o seu, naturalmente. O estilo relativamente primitivo da mise en scène vai bem com a sinceridade ofegante do autor e com o seu conhecimento inato da narração cinematográfica, misturando de forma feliz presente, passado, imaginário e fazendo alternar, sobre o plano formal, a pantomima, o ballet, o burlesco e o diálogo dramático. O filme consegue então tornar-se essencialmente um monólogo em que o autor se dirige directamente ao público, que considera ao mesmo tempo a sua razão de ser, um juiz supremo e temível, e um amigo muito querido. Os desenvolvimentos da intriga assemelham-se realmente aos de um discurso, ingénuo e hábil ao mesmo tempo, que difunde diante do espectador o balanço de uma vida. Esse balanço, glorioso e pesaroso, cómico e patético, infinito e irrisório, aos olhos de Chaplin, é o da própria condição humana, totalmente presente neste pequeno melodrama de cinco tostões, transcendido pela nobreza e pela riqueza da inspiração."

Até Sexta!

Sem comentários:

Enviar um comentário