Ao contrário do anunciado, a nossa próxima sessão será O Circo e não The Kid (que, por questões técnicas, teve que ser adiada para o dia 30 de Janeiro). É a quarta longa-metragem de Charlie Chaplin e a sua carta de amor a um mundo itinerante não muito diferente daquele que fez parte durante o início do século XX - a companhia teatral inglesa de Fred Karno. Será apresentado em vídeo por João Lameira, crítico português e um dos fundadores do site À Pala de Walsh.
Numa reportagem escrita durante a rodagem do filme (re-publicada no livro de David Robinson sobre Chaplin, mas de fonte e autor desconhecidos), relata-se: «Homens suados apressam-se no estúdio Chaplin. Carpinteiros, pintores, electricistas, mentes técnicas, trabalhadores. Não se pode deixar Charlie à espera. Uma caravana de vagões de circo é engatada atrás de quatro camiões com motores enormes. Partem para a portela de Cahuenga. Um puxão longo e duro até Glendale. O plateau está inundado de luz. Vem de todas as direcções. O vagão com o dínamo zumbe. Portanto, os homens trabalham pela noite fora.
«Raia a luz do dia. A manhã está fria. Ecoam estalidos de uma dúzia de fogos. É uma faulhada californiana fora do comum. Os carros começam a chegar. O rugido dos tubos de escape assinala a sua vinda. Há um ruído estridente adicional. A grande limusina azul pára. Tem que se acabar O Circo. Chegou toda a gente a horas. Agora o sol está a atrasar as coisas. Porque é que não se despacha e aparece por cima das montanhas? O Vagabundo quer sombras compridas.
«Seis horas e metade da manhã é desperdiçada. A borda da arena do circo está escura demais. Não parece natural. O Vagabundo recusa-se a trabalhar de modo artificial. Os homens começam a suar outra vez. Trinta minutos mais tarde a voz suave fala. “Óptimo! Está óptimo! Vamos filmar!”
«As câmaras giram. Os vagões de circo movem-se pela vasta extensão de espaço aberto. Há uma bela neblina em plano de fundo. Os cavalos e as rodas dos vagões provocam nuvens de poeira. A imagem é deslumbrante. Não se acreditaria que um artista fosse capaz de a pintar. A cena é repetida vinte vezes.
«As câmaras aproximam-se da arena. Com cuidado, os operadores medem a distância. Das lentes até ao Vagabundo. Ele está sozinho no centro da arena.
«Ele ensaia. Acção para a câmara, depois. Oitenta pés (nota: vinte e quatro metros). A actividade é retomada. E outra vez! E outra vez! Cinquenta pessoas assistem. Todos os membros da companhia. Há poucos olhos que não se humedecem. A maior parte deles conhece a história. Sabiam o significado deste último "plano".
«"Como é que este ficou?" veio a pergunta do Vagabundo. Cinquenta cabeças acenaram afirmativamente. “Então vamos repeti-lo; só mais uma vez” disse o homem de calças largas e chapéu de coco e casaco desajustado e sapatos de batalha. O sol estava a subir. As sombras compridas ficavam cada vez mais pequenas. “Dêem o dia por terminado,” disse o Vagabundo, “estamos aqui outra vez amanhã às quatro."»
Numa reportagem escrita durante a rodagem do filme (re-publicada no livro de David Robinson sobre Chaplin, mas de fonte e autor desconhecidos), relata-se: «Homens suados apressam-se no estúdio Chaplin. Carpinteiros, pintores, electricistas, mentes técnicas, trabalhadores. Não se pode deixar Charlie à espera. Uma caravana de vagões de circo é engatada atrás de quatro camiões com motores enormes. Partem para a portela de Cahuenga. Um puxão longo e duro até Glendale. O plateau está inundado de luz. Vem de todas as direcções. O vagão com o dínamo zumbe. Portanto, os homens trabalham pela noite fora.
«Raia a luz do dia. A manhã está fria. Ecoam estalidos de uma dúzia de fogos. É uma faulhada californiana fora do comum. Os carros começam a chegar. O rugido dos tubos de escape assinala a sua vinda. Há um ruído estridente adicional. A grande limusina azul pára. Tem que se acabar O Circo. Chegou toda a gente a horas. Agora o sol está a atrasar as coisas. Porque é que não se despacha e aparece por cima das montanhas? O Vagabundo quer sombras compridas.
«Seis horas e metade da manhã é desperdiçada. A borda da arena do circo está escura demais. Não parece natural. O Vagabundo recusa-se a trabalhar de modo artificial. Os homens começam a suar outra vez. Trinta minutos mais tarde a voz suave fala. “Óptimo! Está óptimo! Vamos filmar!”
«As câmaras giram. Os vagões de circo movem-se pela vasta extensão de espaço aberto. Há uma bela neblina em plano de fundo. Os cavalos e as rodas dos vagões provocam nuvens de poeira. A imagem é deslumbrante. Não se acreditaria que um artista fosse capaz de a pintar. A cena é repetida vinte vezes.
«As câmaras aproximam-se da arena. Com cuidado, os operadores medem a distância. Das lentes até ao Vagabundo. Ele está sozinho no centro da arena.
«Ele ensaia. Acção para a câmara, depois. Oitenta pés (nota: vinte e quatro metros). A actividade é retomada. E outra vez! E outra vez! Cinquenta pessoas assistem. Todos os membros da companhia. Há poucos olhos que não se humedecem. A maior parte deles conhece a história. Sabiam o significado deste último "plano".
«"Como é que este ficou?" veio a pergunta do Vagabundo. Cinquenta cabeças acenaram afirmativamente. “Então vamos repeti-lo; só mais uma vez” disse o homem de calças largas e chapéu de coco e casaco desajustado e sapatos de batalha. O sol estava a subir. As sombras compridas ficavam cada vez mais pequenas. “Dêem o dia por terminado,” disse o Vagabundo, “estamos aqui outra vez amanhã às quatro."»
Gerald Mast, crítico americano há muito desaparecido, escreveu sobre Chaplin e este filme em The Comic Mind: Comedy and the Movies, defendendo que "ao contrário dos filmes dos anos anteriores, O Circo não deixa Charlie cair num ambiente onde o vagabundo realmente não pertence. Um circo é um local onde Charlie bem podia pertencer, porque o circo é uma sociedade da estrada. Mas paralelamente ao outro motivo dominante dos First Nationals, O Circo preocupa-se em saber quem é Charlie ao certo e, por extensão, quem não é. A perseguição visualmente maravilhosa na casa dos espelhos, em que há aparentemente centenas de reflexos de Charlie, é também uma metáfora crucial para todo o filme. Dessas centenas de reflexos, qual deles é a figura real e quais são meras sombras? Na mesma sequência da perseguição, Charlie faz-se passar por um boneco mecanizado. Qual deles é o homem e qual deles a máquina que parece ser um homem?
"Umas das coisas que Charlie não é, é um palhaço de circo convencional. Charlie só é divertido como palhaço de circo quando leva a sua vida normal—a tentar evitar um polícia ou a carregar um conjunto de pratos. Mas quando Charlie faz ensaios para se tornar um palhaço de circo normal, é terrivelmente pouco engraçado em duas rotinas definidas—o número do "William Tell" e o número da "Barbearia". A comédia de Charlie não se consegue encaixar em padrões nem rotinas. As coisas mais engraçadas que ele faz nos seus ensaios são rupturas com as rotinas, os seus próprios erros e improvisações (embora não divirtam o dono sem sentido de humor do circo)."
No Dictionnaire du Cinéma, Lourcelles escreveu que o "o filme é rodado durante um dos períodos mais difíceis de Chaplin uma vez que tem que passar pela campanha de difamação que Lita Grey conduz pela América fora para ter o seu divórcio e que vai levar o cineasta à beira da depressão nervosa. Esta campanha vai-se reflectir no sucesso do Circo, que será melhor acolhido na Europa do que no seu país de origem. Os seus problemas vão levar Chaplin a adiar durante um ano o final da rodagem e o lançamento do filme. A segunda sequência (perseguição do vagabundo através do parque de diversões) é particularmente deslumbrante. Constitui um dos cumes da arte burlesca de Chaplin, em que o ritmo tem tanta importância e dá a sua música própria e o seu ordenamento à profusão abundante de gags. Em Chaplin, o ritmo e a coreografia têm o mesmo papel em relação aos gags que o melodrama em relação à intriga : um papel unificador, amplificador e lírico. Essencialmente, e tirando esta sequência, O Circo é uma obra muito equilibrada, amarga e triste, desenrolando-se num ritmo bastante lento. O vagabundo tornou-se gradualmente um personagem inteiramente positivo e até heróico, e aqui assistimos a um primeiro resultado dessa evolução. Ele paga o mal com o bem e, infeliz ele próprio, torna os outros felizes. A relação dele com o director que o despede e volta a contratar constantemente tem, menos sistematicamente, esse aspecto de « banho de água fria » que vai caracterizar a amizade episódica do milionário e de Charlot no filme seguinte de Chaplin, Luzes da Cidade. Vai-se notar essa particularidade estranha e significativa do personagem, aqui confrontado com o universo do espectáculo : quando está infeliz, perde as suas virtudes cómicas. Chaplin não sofreu pessoalmente essa influência nefasta da sua vida privada sobre a sua arte ; mas sem dúvida que às vezes o receou e que aqui o quis exorcizar.
"N.B. O terceiro episódio da série « Unknown Chaplin » de Kevin Brownlow e David Gill (transmitida em França em Julho de 1983) contém cenas importantes que Chaplin nunca integrou no filme. Uma delas é particularmente bem conseguida. Charlot quer-se fazer valer junto da equitadora. Num café, paga a um cliente para o espancar. O cliente aceita, recebe o dinheiro os golpes e vai-se. Surge então o irmão gémeo do cliente, que Charlot confunde com o outro. Põe-se a bater-lhe, acreditando ter negócio na mesma. O outro reage e põe Charlot K.O. É o rival dele, o funânbulo, que vem então em seu socorro e a cena termina exactamente ao contrário do que queria Charlot : a equitadora vai admirar ainda mais o funânbulo. Apesar da sua qualidade, estas cenas que se passam fora do circo foram suprimidas por Chaplin, sem dúvida numa procura de unidade dramática. Mede-se aqui (a extrema) exigência de Chaplin nesse domínio."
Até Sexta!
"N.B. O terceiro episódio da série « Unknown Chaplin » de Kevin Brownlow e David Gill (transmitida em França em Julho de 1983) contém cenas importantes que Chaplin nunca integrou no filme. Uma delas é particularmente bem conseguida. Charlot quer-se fazer valer junto da equitadora. Num café, paga a um cliente para o espancar. O cliente aceita, recebe o dinheiro os golpes e vai-se. Surge então o irmão gémeo do cliente, que Charlot confunde com o outro. Põe-se a bater-lhe, acreditando ter negócio na mesma. O outro reage e põe Charlot K.O. É o rival dele, o funânbulo, que vem então em seu socorro e a cena termina exactamente ao contrário do que queria Charlot : a equitadora vai admirar ainda mais o funânbulo. Apesar da sua qualidade, estas cenas que se passam fora do circo foram suprimidas por Chaplin, sem dúvida numa procura de unidade dramática. Mede-se aqui (a extrema) exigência de Chaplin nesse domínio."
Até Sexta!
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