sábado, 13 de janeiro de 2018

A Woman of Paris (1923) de Charles Chaplin



por João Palhares

Já se sabe do lugar insólito que A Woman of Paris ocupa na obra de Chaplin, tanto por não ser protagonizado por ele ou girar à volta da sua personagem do vagabundo, como por não ser uma comédia a cem por cento - embora também se possa defender que a partir de Vida de Cão, pelo menos, não há uma única comédia a cem por cento na obra de Chaplin, os risos e as lágrimas cruzam-se constantemente e a tal ponto que nos podem deixar perfeitamente desorientados e embasbacados, como pudemos comprovar a semana passada em Luzes da Ribalta, cuja cena final põe a comédia a brotar literalmente da tragédia. Também se sabe que o risco tomado por Chaplin não deu frutos, voltando dois anos depois ao vagabundo e às suas pantomimas para uma aventura no Alaska. A ideia era lançar a carreira de Edna Purviance, cúmplice do actor e realizador desde os tempos da Essanay, o segundo estúdio em que Chaplin trabalhou, e olhando para o trabalho dela no filme só podemos lamentar que não conseguisse fazer bastantes mais papéis (veja-se a cena em que atira o colar de pérolas pela janela e preste-se atenção às suas reacções). Mas estes malogros não impediram A Woman of Paris de se tornar numa referência central para vários cineastas, inspirando Ernst Lubitsch nas suas fintas míticas à censura exercida pelo Código Hays. 

E não se pode deixar de pensar em Lubitsch na cena da festa das amigas de Marie St. Clair (a personagem que Purviance interpreta no filme), em que um homem se enrodilha num pano branco quando sabemos que está a acontecer exactamente o contrário à mulher que no plano anterior víramos vestida com o dito pano; na cena da massagista que parece estar a censurar a amiga de Marie com o olhar e a castigá-la por interposta pessoa quando bate com as mãos nas costas da cliente; no passeio de Adolphe Menjou pelo quarto de Purviance (como nos lembra Joseph McBride), com uma confiança que nos inspira bastantes ilações; o campo-contra-campo muito elucidativo do jantar em que somos apresentados à personagem de Menjou, Pierre Revel, acompanhado duma Marie completamente transformada desde a última vez que a tínhamos visto na sua pequena cidade, e em que o par formado pela solteirona mais rica de Paris e o rapaz que Revel descreve com um encolher de ombros serve de espelho e reflexo à relação de Marie com o solteirão mais rico de Paris. A quem encolhe Revel os ombros, então? A leveza formal conseguida por Chaplin para este filme tão trágico está intrinsecamente ligada à leviandade com que as personagens se tratam umas às outras e com que olham para a vida e para o mundo. O elemento destabilizador é o Jean Millet de Carl Miller, cujas aparições, além de destoarem com o comportamento das outras personagens, destoam também com a leveza formal mantida durante a sua ausência, como trovões solitários que só nos podem fazer duvidar da normalidade aparente das vidas destes parisienses, que podiam ser nova-iorquinos, madrilenos ou bracarenses. 

Chaplin, como sempre, fala de nós. De si próprio, também. De todas as vezes em que se é frívolo demais e não se mostra qualquer arrependimento, de todas as vezes que nos julgamos melhor que os outros e os tratamos como subalternos ou seres inferiores, dos subterfúgios e das desculpas egoístas e esfarrapadas que às vezes se dá aos amigos, da preguiça e da volúpia, dos insultos que às vezes saem como gestos involuntários, soluços, arrotos, do apego ao dinheiro e dos esquemas que se montam para o arranjar, das recusas estúpidas e dos assentimentos com senão, das falsidades e dos fingimentos que se julga trazerem benesses, do sucesso fácil e dos sorrisos e das companhias falsas que se apegam a ele como moscas, do fazer que se sabe quando não se sabe nada, do dizer que se fez quando não se fez nada, dos desentendimentos e dos desencontros inocentes ou fatídicos que tantas vezes acontecem, das humilhações que se provocam por malícia, por vingança ou por acidente. O que é que estas coisas podem causar a curto ou a longo prazo, a quem está do outro lado? Pensa-se nisso ou encolhe-se os ombros? 

Pode-se passar a vida inteira a cruzar pessoas sem conhecer ninguém a sério, que unha com carne não é só uma expressão. O filme de Chaplin acaba com um carro e uma carroça a cruzarem-se na estrada. Num está Pierre e noutra está Marie, sem sequer se verem. Nada de muito diferente do que acontecia quando supostamente se conheciam, é o que nos poderá estar Chaplin a mostrar. Mostra-nos também que o carro vai a toda a velocidade para lugar nenhum, antes do dono encolher os ombros pela última vez, e que a carroça vai devagar ao longe, com muita vida e camaradagem lá dentro. Não é preciso dizer quem ganhou. Nem é preciso falar em ganhar.

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