sábado, 20 de janeiro de 2018

The Circus (1928) de Charles Chaplin



por João Palhares

Há quem tenha sido apresentado ao mundo do cinema por ouvir contar estórias dos pais ou dos avós antes de ir dormir. Quem não tenha visto uma única curta do Bucha e do Estica e soubesse as suas aventuras de cor, por pedir a um deles que as contasse uma e outra vez. Talvez já na altura parecessem a encenação de um mundo e de um prazer de criança perdidos, como um suspiro nostálgico e revelador. “Nostálgico mas nunca saudosista,” como diria o José Lopes, sempre cheio de razão. Quando se viu finalmente essas curtas parecia tudo tão familiar, era difícil acreditar que havia dois actores chamados Oliver Hardy e Stan Laurel a interpretar os seus papéis. É difícil que hoje se possa enganar um miúdo assim, mas a verdade é que Laurel e Hardy já se foram e o Bucha e o Estica continuam aqui, lembrando as pessoas de outras pessoas e dessas noites em que era uma palavra que valia por mil imagens. Talvez por isto exista quem não se importe que alguém lhe conte um filme e lamente hoje a falta de talento generalizada para contar estórias. Da tradição oral que além de passar testemunho e conhecimento preciosos, ligava profundamente as pessoas. 

Se à noite era o cinema, de dia era o circo, e a descrição das macacadas e dos sarilhos do duo americano era exemplificada pelas pantomimas dos palhaços e dos mimos. Nada de mais didáctico e elucidativo. Houve um tempo em que o circo e o cinema eram duas faces da mesma moeda, dos talentos que singravam na vida itinerante às almas que fugiam da vida. Dos mágicos e das aberrações, dos animais e dos homens. O mundo numa arena circular e imperfeita. Também Murnau foi ao mundo do circo e fez um filme que hoje só mesmo contado é que se pode ver, 4 Devils, sobre quatro órfãos resgatados e perdidos pela vida na arena e nos trapézios. De He Who Gets Slapped de Victor Sjöström, ao Maior Espectáculo do Mundo de DeMille ("A fierce, primitive fighting force that smashes relentlessly forward against impossible odds: That is the circus—and this is the story of the biggest of the Big Tops—and of the men and women who fight to make it—The Greatest Show On Earth!", narrava-nos o realizador no princípio do filme), passando pelo Freaks de Tod Browning, que conta exactamente a mesma história do filme de Chaplin que hoje vamos ver, já foi muito o interesse do cinema pela vida do circo. Antes de se propagar o medo universal aos palhaços (como é que aconteceu, alguém sabe?), antes dos mimos acharem que têm que pedir desculpa por serem mimos e por terem talento para o serem. 

Chaplin dá-nos, então, este filme em 1928. O que o interessava ou aproximava ao mundo do circo não é difícil de adivinhar. Também ele ia em digressão pelo país fora e assistia aos dramas e às anedotas de bastidores da companhia teatral inglesa de Fred Karno ou em rodagem com a sua própria companhia de produção. Conhecia a vida da estrada. Também ele sabia dos problemas concretos da arte de fazer rir, de quanto se estragava a espontaneidade com a rigidez de um número demasiado pensado ou de quão a sério se tinha que levar uma dada situação para parecer engraçada a outros olhos (senão porque é que opõe ao jogo de cadeiras repetitivo do número do barbeiro um jogo semelhante cheio de nuances entre a sua personagem e a do patrão do circo?) Das merendas partilhadas e dos olhares trocados com uma mulher, embora não fosse preciso ir ao circo para experimentar isso. Não deixam de fazer rir a bandeiras despregadas os seus acessos de violência quando acha que a amada dele também o ama. Aos saltos e aos pontapés pelo circo fora, com um sorriso endiabrado na cara. Na Quimera do Ouro, desfaz uma cabana inteira até a rapariga regressar e o olhar completamente atónita. O vagabundo de Chaplin não vive à larga - longe disso, como é óbvio -, mas pode dar-se ao luxo de discutir termos de contrato com o patrão, de limpar com muito cuidado o seu chapéu redondo, de dar ares graciosos de aristocrata. Não há como o pobre para mostrar ao rico como gastar o dinheiro ou como viver a vida. E quando se ri dos números dos palhaços quando está tudo sério a tentar trabalhar (que com o trabalho não se brinca)? 

O Circo também nos reenvia às memórias que achávamos perdidas, suscitadas pelas aventuras e desventuras do maltrapilho universal. De um avô a pôr o neto a usar um balde do lixo municipal como casa de banho sem se importar com quem pudesse estar a ver, de uma criança a acenar e a cumprimentar as pessoas como se fosse o presidente da república. Dos primeiros filmes falados e das últimas idas ao circo. E é sempre triste quando o circo se desmonta e vai para outra cidade, há sempre algo que morre dentro de um miúdo, e nos filmes é sempre o fim de mais qualquer coisa. É o regresso ao outro circo, o das nossas vidas. Sinal do medo que se possa crescer o suficiente para se esquecerem os dias de revelia ao relento e ao sol. 

Mas o cinema não deixa.

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