sábado, 20 de janeiro de 2018

76ª sessão: dia 23 de Janeiro (Terça-Feira), às 21h30


Das arenas e dos trapézios do Circo, voltamos agora ao Alaska da Quimera do Ouro, a nossa próxima sessão, iniciando as exibições na sala de cinema do Braga Shopping. É a terceira longa-metragem de Charlie Chaplin, feita depois do insucesso de A Woman of Paris, em que regressa à sua personagem do vagabundo e cujas vestes não tirará até ao Grande Ditador. É um dos filmes mais bem amados do realizador, pleno de cenas míticas, conhecidíssimas e que talvez dispense apresentações. Mas fazemo-lo na mesma.

Chaplin, na sua autobiografia, descrevendo a sua inspiração para o filme, escreveu que "estava agora livre para fazer a minha primeira comédia para a United Artists e ansioso para superar o sucesso de The Kid. Esforcei-me, pensei e cismei durante semanas para tentar ter uma ideia. Dizia continuamente a mim próprio: ‘Este próximo filme tem que ser um épico! O maior de todos!’ Mas não me vinha nada. Então, num Domingo de manhã, enquanto passava o fim-de-semana na casa dos Fairbanks, sentei-me com o Douglas depois do pequeno-almoço, a olhar para vistas estereoscópicas. Algumas eram do Alaska e do Klondike; uma era uma vista do Porto de Chilkoot, com uma longa fila de garimpeiros a escalar pela sua montanha congelada, com uma legenda impressa no verso a descrever as provações e as dificuldades suportadas ao tentar transpô-lo. Isto era um tema maravilhoso, pensei eu, suficiente para estimular a minha imaginação. Começaram-se a desenvolver ideias e objectivos cómicos imediatamente, e, embora não tivesse história, começou a crescer a imagem de uma.

"É paradoxal que na criação de comédia a tragédia estimule o espírito do ridículo; suponho eu porque o ridículo é uma atitude de desafio: temos que rir face à nossa impotência contra as forças da natureza – ou dar em maluco. Li um livro sobre a Expedição dos Donner que, a caminho da Califórnia, perderam a estrada e ficaram bloqueados pela neve nas montanhas da Sierra Nevada. Só sobreviveram dezoito dos cento e sessenta pioneiros, morrendo a maioria de fome e de frio. Alguns recorreram ao canibalismo, comendo os seus mortos, outros grelharam os seus sapatos para aliviar a fome. Eu concebi uma das nossas cenas mais engraçadas a partir desta tragédia angustiante. Em fome extrema eu fervo o meu sapato e como-o, tirando os pregos como se fossem ossos de um capão delicioso, e comendo os atacadores como se fossem esparguete. Neste delírio de fome, o meu parceiro está convencido que eu sou uma galinha e quer-me comer.

"Desenvolvi uma série de sequências cómicas durante seis meses e comecei a filmar sem um guião, achando que uma história se desenvolveria das rotinas e dos objectivos cómicos. Claro que fui conduzido a muitos becos sem saída, e foram descartadas muitas sequências engraçadas. Uma delas foi uma cena de amor com uma rapariga esquimó que ensina o vagabundo a beijar à esquimó esfregando os narizes. Quando ele parte na demanda do ouro, esfrega o nariz dele apaixonadamente contra o dela numa despedida carinhosa. E enquanto se afasta volta-se para trás e toca no seu nariz com o dedo do meio e atira-lhe um último beijo carinhoso, limpando depois o dedo nas calças, subrepticiamente, porque está um bocado constipado. Mas a parte da esquimó foi cortada porque entrava em conflito com a história mais importante da rapariga do salão de dança."

O realizador italiano Michelangelo Antonioni escreveu sobre A Quimera do Ouro para o jornal L'Italia libera em 1944, dizendo que "o filme é um dos mais belos que o cinema já nos deu, é uma obra de poesia e, portanto, está completa em si mesma, perfeita. Nascida muda, muda deve permanecer. Sob um ponto de vista comercial, talvez possamos tolerar a música, considerando o facto de que todos os filmes mudos já foram projectados com o acompanhamento tradicional do pequeno piano, mas o comentário falado é verdadeiramente insuportável. Se se chega a deixar de o ouvir é graças ao valor intrínseco da obra que continua a ser, com O Circo, a síntese mais completa da arte de Chaplin. Falou-se muito deste trabalho porque ainda se tem que elogiá-lo; basta dizer que, depois de muitos anos, isso confirma uma impressão antiga: que Chaplin, aqui, chega também a uma unidade plástica excepcional com a unidade psicológica normal. Avesso a qualquer complacência formal, ele compôs aqui uma sinfonia discreta e sóbria a preto e branco que da fila de garimpeiros na montanha à silhueta do mimo na tempestade, passando pelo prodigioso arabesco do travesseiro estripado, potencia ainda mais o testemunho extraordinário dos sentimentos. O final continua estranho, mas isto também continua estranho à solidão humana de Charlot."

Já Jacques Lourcelles, no Dictionnaire, escreveu que é a "segunda longa-metragem de Chaplin (depois de A Woman of Paris) para a United Artists, que tinha co-fundado em 1919 com Douglas Fairbanks, Mary Pickford e David Wark Griffith. É o filme de Chaplin que se parece mais com um filme de aventuras e o cineasta usa essa característica para aperfeiçoar e acentuar novamente a solidão do seu personagem. Sozinho na sociedade e nos seus amores infelizes, Charlot também está sozinho no meio da imensidão de uma natureza hostil. As suas emoções e as suas dificuldades (medo, fome, etc.) são aqui ainda mais vivas e mais fundamentais que nas cidades. Isso não impede que a maior parte das cenas se desenrole em espaços fechados e bastante reduzidos (a cabana, o saloon), porque o aspecto coreográfico do burlesco de Chaplin exige limites precisos bem como a possibilidade de examinar ao microscópio os deslocamentos e as mímicas do actor. A rodagem começou em exteriores na Sierra Nevada, com Lita Grey no papel feminino principal. Dessa primeira fase da rodagem só sobrevivem os planos da fila de prospectores, no começo. De seguida, Chaplin refez em estúdio a maior parte das cenas já rodadas e deu o papel feminino a Georgia Hale. (Aqui, os biógrafos divergem quanto às razões dessa mudança: o casamento de Chaplin com Lita Grey começa a dar para o torto; Lita Grey está grávida e não pode rodar; Chaplin está insatisfeito com a sua interpretação.) A realização muito dispendiosa de A Quimera do Ouro durou catorze meses mas foi amplamente benéfico, dado o sucesso gigantesco do filme (ele nunca desvaneceu durante as reposições do pós-guerra: vê-se então uma cópia sonorizada em que os intertítulos, para lamento de muitos críticos, foram substituídos por um comentário um bocado insistente e grandiloquente). A beleza do preto e branco, a sobriedade, as nuances e a emoção do trabalho dos intérpretes, a perfeição cómica das cenas que se desenrolam em lugares fechados (a refeição com o sapato; Charlot confundido por uma galinha pelo seu companheiro; as oscilações perigosas da barraca na beira do abismo) contribuíram para fazer do filme um dos universalmente mais apreciados e um dos menos discutidos da obra de Chaplin. Para além da virtuosidade do estilo e da diversão do tom, a personagem de Charlot vai de frustração em frustração. Possui uma tristeza e uma envergadura trágica em relação às quais o epílogo feliz parece uma conclusão razoavelmente aceitável e artificial. 

"N.B. Comparada à original, a versão sonorizada (1942 e 1956) ficou amputada de duas pequenas cenas (com o urso e na cabana). 

"BIBLIO. : narração em 95 fotogramas in « L’Avant Scène » nº 219-220 (1979)."

Até Terça-Feira!

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