quarta-feira, 24 de janeiro de 2018

77ª sessão: dia 26 de Janeiro (Sexta-Feira), às 21h30


E chegamos às Luzes da Cidade, filme de todos os milagres, de todos os sorrisos e de todas as lágrimas que será a nossa próxima sessão, de regresso ao sótão da velha-a-branca. Fruto de dois anos de trabalho com muitos avanços e recuos da parte de Chaplin, que não queria menos que a perfeição, estreou quando o cinema falado era a regra da indústria mas não foi menos bem sucedido por isso.

Chaplin, em Março de 1931 para o Cinéa-Ciné pour Tous, mostrando as suas reservas para com o cinema falado, contou que muito pensou sobre o assunto, dizendo que "quanto mais discutia esta questão com uns e com outros mais perplexo me via. Foi então que recordei alguns dos episódios mais marcantes dos meus filmes antigos, tentando discernir se ao lhes acrescentar palavras as diferentes cenas melhorariam em alguma coisa.

"Lembrei-me então da cena da caneta em Shoulder Arms, da consoada falhada da Quimera do Ouro, da cena do camião em que volto a encontrar Jackie, em The Kid, etc, e isso confirmou a minha primeira resolução: a palavra não teria acrescentado nada a isto tudo, bem pelo contrário."

Henry Bergman, colaborador de sempre de Chaplin, assistiu à construção da mais famosa das cenas da obra do realizador, e confessou a Mayme Ober Peak do Boston Globe em 1931 que "quando ele fez a última cena das Luzes da Cidade, em que a florista o reconhece. Eu estava sentado ao lado da câmara. Conseguia sentir os meus olhos a encherem-se de lágrimas gradualmente. 'É engraçado que me afecte desta maneira,' pensei eu. Voltei-me para trás e a anotadora tinha lágrimas a escorrer-lhe pela cara. Olhei para o operador de câmara, o Sr. Totheroh, que estava com o Charlie há 15 anos, e ele estava a chorar."

"Quando o Charlie viu a reacção, ficou como uma criança. Olhou para mim e disse, 'Ficou bem, Henry?' Depois ficou um bocado convencido e disse, 'Vou fazê-la outra vez' 'Oh, não a estragues, Charlie.' urgi eu. Mas ele fez a cena mais duas vezes e sempre melhor."

Jacques Lourcelles, no Dictionnaire, escreveu que é o "penúltimo filme mudo de Chaplin, mas contendo uma banda sonora com música e efeitos sonoros. A rodagem durou quase três anos, do começo de 1928 ao fim de 1930. Sofre várias interrupções devido à chegada triunfal do filme falado, às hesitações de Chaplin e de forma mais geral aos seus métodos de trabalho, que ele queria tão livres, tão solitários e tão desligados de qualquer contingência material como os de um escritor ou de um pintor. Foi impressa uma metragem de película equivalente a cem ou cento e cinquenta vezes a metragem do filme definitivo. Graças a diversos testemunhos, sabe-se há já muito tempo que o primeiro encontro entre Charlot e a cega tinha requerido meses de rodagem. Mas um documento fabuloso e único (incluído no segundo dos três episódios sobre Chaplin de Kevin Brownlow e David Gill produzidos pela televisão inglesa e programados na França em Julho de 1983) permite ver – com esboços a apoiar – Chaplin nas roupas do seu papel no processo de realizar a cena e de procurar a melhor solução para mostrar que a cega toma Charlot por um milionário. Começada à volta do início da rodagem, essa cena só encontrou a sua conclusão em Setembro de 1930, no 534º dia de rodagem (dos quais só 166 tinham sido consagrados a verdadeiro trabalho com a equipa). Entre outras peripécias, Chaplin pensou em substituir Virginia Cherrill a meio da rodagem por Georgia Hale, a estrela de A Quimera do Ouro. Teve que desistir. (O episódio de Kevin Brownlow contém testes da última cena com Georgia Hale.) Por outro lado, ele voltou mesmo a rodar todas as cenas do milionário bêbado, substituindo Henry Klive por Harry Myers. Como sempre em Chaplin, estas condições de trabalho ao mesmo tempo ideais e extravagantes (se as compararmos às da maior parte dos filmes) ajudaram o autor a encontrar aquela simplicidade na perfeição que caracteriza a sua mise en scène. Como notaram muitos comentadores, e Pierre Leprohon em particular (in « Chaplin », Nouvelles Éditions Debresse, 1957), o « vagabundo », usando aqui, além do seu chapéu e da sua bengala, uma roupa relativamente asseada (antes da sua saída da prisão), é o personagem mais activo, mais lúcido e menos sonhador do filme. Mantém vivo o milionário deprimido e alcoólico e fá-lo experimentar os prazeres da amizade (nos períodos muito intermitentes em que este é capaz de os sentir). Ele alimenta os devaneios românticos da cega, permite-a curar-se e fá-la aceder a um melhor estatuto social. Sem ceder aqui a nenhum estudo social propriamente dito, Chaplin concretiza todo o conteúdo social e sentimental do seu filme através de duas personagens principais que nunca se vão encontrar, o milionário e a cega. A personagem do milionário permite a Chaplin representar de uma maneira memorável a relação episódica que existe a seus olhos entre o pobre, o marginal e as classes apossadas. O dia comum do vagabundo, é um banho de água fria tortuoso como um pesadelo, aliado a incertezas e a uma angústia permanentes. Todas as cenas do filme estão ligadas entre si por uma trama melodramática que é como a melodia eterna da obra, assegurando-lhe unidade e coerência e mantendo essa abstracção que observa o estilo de Chaplin desde as suas primeiras longas-metragens. Tendo confiado a duas personagens a responsabilidade de exprimir os aspectos fundamentais do filme, Chaplin pode dedicar um grande número de cenas ao burlesco puro. (Neste sentido, Luzes da Cidade é o último dos seus filmes em que a sua vitalidade cómica triunfa com tanta despreocupação e brio.) O burlesco puro aparece na evocação cómica da inadaptação do herói, especialmente quando este é confrontado, não com um indivíduo, mas com um grupo, com uma classe e com uma dada situação através dos quais só passa, como um meteoro, o espaço de uma sequência. O burlesco triunfa sobretudo nas cenas do apito e do combate de boxe. Esta última sequência (genial) dá-nos uma das chaves para o estilo de Chaplin. Ela é feita de planos muito longos (devido ao elevado número de deslocamentos de personagens). Não contém nenhum plano de corte. O seu ritmo quase coreográfico é essencial para a eficácia dos gags. Esse ritmo existe como tal e não precisa de ser apoiado por nenhum efeito de montagem. A câmara contenta-se em registar a acção e de a reflectir como um espelho. O público do mundo inteiro fez deste filme mudo e sonoro um triunfo, em 1931. A reposição de 1950, numa altura em que o mudo não era mais do que uma memória distante, não foi menos triunfal."

Até Sexta!

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