sábado, 27 de janeiro de 2018

City Lights (1931) de Charles Chaplin



por Egon Erwin Kisch

“Charlie? Sim, podemos parar e ir vê-lo, se quiseres.” Naturalmente, eu queria, porque ele é um desses espíritos escolhidos que vai impedir a América de conhecer o destino que atingiu Sodoma e Gomorra. O homem que me fez esta pergunta é outro espírito escolhido—Upton Sinclair. Estávamos perto de um dos grandes estúdios de cinema em Hollywood onde Sinclair tinha estacionado o carro. “Charlie? Sim, podemos parar e ir vê-lo, se quiseres.” 

Eu respondi que tinha há muito o desejo de o conhecer, e que ontem um dos magnatas do cinema me tinha dito que todas as tentativas para ver Charlie estavam fadadas a acabar em fracasso, mas que todos os fanfarrões de Hollywood se gabavam de ser amigos de Charlie por uma vez o terem visto a jantar no restaurante do Henri.

"Sim, ele é terrivelmente perseguido," disse Sinclair. "Vêm-no ver todos os dias mais de cem pessoas por toda a espécie de razões." Sinclair levou o carro dele para a esquina da Avenida de Longpre com a Avenida de La Brea, atrás de um grupo de casas com telhados vermelhos. Nada nelas sugeria um estúdio de cinema, porque os estúdios de cinema em Hollywood são estruturas gigantescas rodeadas de muros com portões de grades de ferro e seguranças. No entanto, aqui só havia uma pequena placa de metal a dizer "Chaplin Studios." Entrámos num escritório onde estava uma rapariga que dividia o tempo dela a atender o telefone e a dactilografar a correspondência. Passámos por ela a caminho da sala de espera, onde dois homens saudaram Sinclair, tendo um deles dito, "Ali vem o patrão."

O patrão—o velho—o chefe—voltámo-nos para olhar para ele, para olhar para Charlie Chaplin.

"Olá, Upton," gritou ele. "Como é que acontece deixares-nos ver-te outra vez?"

Sinclair disse qualquer coisa sobre o convidado que tinha trazido consigo.

"Óptimo," respondeu Charlie Chaplin e apertámos a mão.

Ele estava ocupado a trabalhar num filme novo, Luzes da Cidade, mas "Agora chegamos a um beco sem saída e não conseguimos avançar. Não me ajudas, Upton?'

Como se pudéssemos ajudar Charlie Chaplin!

*

Mas o homem que nós vemos não é o mesmo Charlie Chaplin que aparece nos filmes. Acaba de vir do trabalho, certamente, mas não esteve propriamente a interpretar. Não tem o seu pequeno chapéu maltratado, a sua bengala de bambu, ou o seu bigode preto. Além disso, os sapatos dele não são tão divertidos ou tão ridículos como parecem nos filmes. Fazem barulho enquanto ele anda e estão sujos e um bocado grande para ele, mas são sapatos normais. O seu significado cósmico deve-se inteiramente à arte do dono deles, que agora nos guia, uma vez que o vamos ajudar, até à sala de projecção. Os sapatos tornam-se imediatamente imperceptíveis e o homem que os usa só parece um bocado desajeitado. Põe um par de óculos de massa, porque vê tão mal ao perto que nem sequer consegue escrever o seu nome sem eles.

Enquanto esperamos sentados na sala de projecção, enquanto o filme está a ser preparado, Charlie Chaplin toca uma canção chamada "Violetera" num harmónio e canta palavras espanholas imaginárias. Convida-me a ir a casa dele, onde irá tocar para mim no órgão dele.

Mas agora chegou a altura de vermos o filme. Só um quarto dele é que está pronto e grande parte disso foi mudado e cortado, mas o espectáculo começa mesmo assim.

Durante o incidente da corrente do relógio, que mais tarde descreverei, rio-me alto e, assim que o faço, alguém me põe a mão no joelho e me diz para estar quieto. Quem é que tem o direito de me impedir de rir descontroladamente de um dos números mais selvagens de Charlie Chaplin? Ninguém mais que o próprio Charlie Chaplin, porque é ele que está sentado ao meu lado.

O filme ainda não está pronto. Temos que o ajudar e o meu riso está deslocado. É como os risos que o próprio Charlie deu no Circo quando estava a ver os números dos palhaços.

"Maravilhoso, maravilhoso!" sussurrámos nós depois do bocado de filme ter passado e a sala de projecção ter sido acesa outra vez. Mas o patrão pergunta, "Podiam-me dizer o que é que viram?"

"Claro, facilmente. Está uma rapariga a vender flores numa esquina. Depois aparece Chaplin."

"Oh, ainda não." "Antes disso vem um homem com a mulher e compra uma flor."

"Um homem? Que tipo de homem?"

“Um homem que se parece um bocado com o Adolphe Menjou."

"É um homem elegante com uma senhora. Isso é importante. Agora o que acontece?"

"Depois o Charlie dobra a esquina da rua. Vê uma fonte de água a jorrar da parede e começa a tirar as luvas, como preparação para beber. Mas não tira a luva toda duma vez. Fá-lo dedo a dedo. No entanto, falta um dedo. Charlie procura-o em vão."

"Não, isso não está claro. Temos que filmar essa cena outra vez." (Ele explica-me que a cena é um fracasso. Ele tinha tentado tirar o primeiro dedo da luva e, como não o encontra lá, procurou-o no chão e depois começou a tirar os dedos da luva que existia mesmo.)

"Agora Charlie tira o copo do muro."

*

"Reconheceram o papel que estou a interpretar?"

"Como assim?"

"Estou um bocado diferente do que tinha sido antes, desta vez."

"Sim, tens um pequeno laço em forma de morcego e luvas. Queres parecer um vagabundo bem elegante, desta vez, não é? É esse o significado do incidente com o copo."

"Descreve-o, por favor."

"Charlie pega no copo, que está agarrado a uma corrente. A corrente cai sobre o estômago dele e, notando que daria uma esplêndida corrente para um relógio, ele tenta arrancá-la do muro, enquanto está a beber. Não consegue e afasta-se com um ar resignado na direcção da florista. Ela está a pedir."

"Pára, pára! Há uma coisa no meio."

Não, não nos conseguíamos lembrar absolutamente de nada.

"Vem um carro."

"Depois do carro chegar, sai um cavalheiro de lá e passa por Charlie, que o cumprimenta na sua maneira habitual."

"O que é que o carro faz?" Eu respondo que não sei e Upton Sinclair faz o reparo, "Acho que se vai embora."

"Oh, com os diabos, com os diabos," resmunga Charlie, angustiado, "um falhanço completo."

As pessoas que trabalham com ele estão igualmente angustiadas.

*

Continuo a descrever o que aconteceu. "A rapariga oferece uma flor a Charlie, naturalmente. Cai ao chão; baixam-se os dois e Charlie apanha a flor, mas a florista continua a procurá-la, embora ele lhe esteja a estender a flor. Apercebendo-se que a rapariga é cega, ele compra a flor e vai-se embora. Depois volta outra vez para descobrir se a rapariga é mesmo cega."

"Não, não! Como é que ele entra em cena da segunda vez?"

"Da segunda vez ele entra de forma muito precipitada, como se estivesse com pressa, mas na verdade fica no mesmo sítio e levanta os pés dele para cima e para baixo para que o barulho dos seus passos pareça desaparecer gradualmente à distância. Depois volta-se calmamente em bicos de pés e vai na direcção da rapariga e senta-se ao lado dela. Entretanto, ela esta a regar as flores e finalmente atira o resto da água no regador para a cara de Charlie. Ele escapole-se, volta uma terceira vez, e compra uma flor novamente. A rapariga quer fixá-la sobre ele e, enquanto procura a botoeira dele, descobre que a flor que ele tinha comprado antes já lá está. Assim, ela apercebe-se que foi por causa dela que ele regressou. Charlie indica que a outra botoeira ainda está livre, mas ela responde que as pessoas não usam flores nas duas botoeiras. Depois ele implora-lhe que fique com a flor, que ela prende no peito.

"E agora ela está apaixonada."

"Por quem?"

"Pelo Charlie."

"Oh, com os diabos, com os diabos!"

"O que é que foi?"

"Não passou ninguém?"

"Não, que eu saiba não."

"Oh, com os diabos, com os diabos. Não repararam outra vez no carro e no cavalheiro?"

"Não, não reparei em nada."

Charlie enterra cara dele nas mãos em desespero. Os assistentes dele também estão deprimidos com o que aconteceu. Porque é que é tão terrível que um estrangeiro, de passagem pela cidade, não compreenda um dos seus gags?

Mas é muito mais que um gag. É a ideia fundamental do filme. E falhou completamente a ser registada. Não era possível retirar outra conclusão da descrição que eu dei do que tinha visto. A rua é uma rua elegante, simbolizada pelo cavalheiro e pela senhora elegantes que lá aparecem primeiro. A florista pensa erradamente que o homem que sai do carro é o que lhe compra a flor e que voltou para a ver. O carro—ninguém reparou nisso—mantém-se na esquina da rua durante toda a primeira cena e volta a aparecer quando a rapariga cega está a dar a segunda flor a Charlie. Enquanto isto está a acontecer, o cavalheiro regressa e entra no carro dele. É ele, o homem rico com o carro, que desperta mesmo o amor dela. Charlie repara imediatamente neste erro, e durante o resto inteiro do filme tenta-se fazer passar pelo homem rico. Rouba dinheiro que dá a um médico para a curar da cegueira dela. É preso, e quando a rapariga o vê depois de ser libertado, parte-se a rir, porque não suspeita quem ele seja e ele parece tão engraçado como Charlie sempre pareceu. Mas se o público não compreende o quid pro quo trágico, o desespero de Charlie, a sua sensibilidade em relação à pobreza, o seu desejo súbito em assumir uma nova personalidade roubando dinheiro e ganhando depois a afeição da rapariga—estas coisas também não se percebem, e está tudo perdido.

"Temos que filmar a coisa toda outra vez," diz Charlie.

*

E agora começa o trabalho árduo e sério de dramaturgia e realização. Dura quase oito dias, e Charlie, mesmo a meio da noite, pode-se sair subitamente com um "Como é que seria se assim e assado com a florista?"

Foram escritos livros sobre actores, realizadores, pantomima, e o drama popular, mas ainda ninguém tentou descrever Charlie Chaplin, cujos métodos de realização são únicos, e cuja reputação é fabulosa, porque Charlie Chaplin escreve a história, adapta-a para cinema, e realiza-a. Não se devia anotar à mão ou gravar num ditafone tudo o que ele diz durante esta actividade?

A cena foi ensaiada durante oito dias a fio, e cada um de nós interpretava o papel da florista, o papel do homem a sair do carro, e o papel do motorista uma e outra vez, mas Charlie Chaplin era sempre Charlie Chaplin. Ele entregava-se cheio de entusiasmo a cada nova tentativa.

 "Como é que seria se...?"—e assim continua, interrupção a interrupção. Os defeitos dramáticos da situação inaugural são logo explicados. O facto de a rapariga confundir Charlie pelo homem a sair do carro não pode ser compreendido de maneira nenhuma pelo público, porque ainda não sabe da cegueira dela. Portanto este facto tem que ser revelado mais cedo, mas Charlie não o quer fazer porque acha que a descoberta trágica tem que ser feita por si próprio e pelo público simultaneamente. Será que se podia tornar a cena com o carro vívida o suficiente para o público se lembrar dela? Como é que seria se o homem saísse do carro e dissesse ao motorista, "Espera aqui." Imagine-se que Charlie fecha educadamente a porta do carro e a rapariga dá um par de passos nessa direcção!

Ou poderia ser feito desta maneira: suponha-se que o homem caminha atrás de Charlie ao mesmo ritmo que ele, continua atrás dele e acende um cigarro, para que Charlie pense que a flor que é estendida ao outro homem é para ele. O homem no carro deve ser de aparência bem indiferente ou deve ser um jovem muito elegante? Claro, a rapariga não o vê, mas o público vê e sente que ele deve causar uma grande impressão à rapariga. Desta forma o público tem à frente dos olhos a ilusão que existe na mente da rapariga cega.

Como é que seria se a rapariga, que o público agora reconhece como cega, dissesse a Charlie quando ele compra a segunda flor, "Dê isto ao motorista?" Como é que seria se Charlie estivesse a tentar ajudar o cavalheiro a entrar no carro e a florista tentasse dar a segunda flor pela janela? Mas a janela estaria fechada e não seria a janela, mas a porta aberta do carro, atrás da qual estaria Charlie.

"Maravilhoso, maravilhoso!" grita Charlie e tenta-o fazer. Volta à sua interpretação, mas de repente sai da sua bolha e recua outra vez, dizendo, "Não vai funcionar. Não conseguia interpretar o papel dum lacaio imediatamente a seguir a ter sido surpreendido pelo conhecimento de que a rapariga era cega e de que estava apaixonado por ela."

*

Permitam-me terminar descrevendo um episódio que ocorreu no camarim dele. À esquerda da divisão está um espelho e uma mesa de caracterização com um pente em cima e do outro lado está uma casa de banho. Uma tarde estávamos a beber chá quando uma senhora muito famosa, a melhor amiga de Charlie, foi anunciada. Ele foi ter com ela e eu apressei-me para dentro do camarim para pentear o meu cabelo. À frente do espelho estava pousado um pente, que era branco mas não estava muito limpo. Tinha uma grande massa de cabelo emaranhado. Arranquei-o, atirei-o para o chão e pus o meu cabelo em ordem. Depois ocorreu-me que alguém podia notar no monte de cabelo no chão polido e podia perceber que alguém tinha estado a usar o camarim do patrão em segredo. Talvez o cabelo estivesse a servir algum propósito, portanto voltei a pegar nele e pousei-o ao lado do pente.

Neste momento, um dos amigos de Charlie, Harry Crocker, entrou para se pôr um bocado mais apresentável. "Olha," disse-me ele e apontou para o objecto preto ao lado do pente branco. "Isso é o bigode. Ele teve sempre o mesmo durante quinze anos. Foi escolhido especialmente para ele por um barbeiro teatral nova-iorquino. Nenhum outro bigode consegue aguentar todo o tipo de tempo como este e nós perdemos completamente o rasto do barbeiro nova-iorquino que no-lo arranjou. O Charlie sempre disse que se este bigode se perdesse interpretava de barba feita." Devo ter ficado pálido com o medo. Pensem nisso—Charlie Chaplin sem um bigode—e a culpa era minha!  

in « I Work with Charlie Chaplin », Frankfurter Zeitung, 1929.
traduzido por João Palhares

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