quarta-feira, 24 de janeiro de 2018

The Gold Rush (1925) de Charles Chaplin



por José Oliveira

Hoje, pouco depois do LUCKY STAR - Cineclube de Braga ter completado dois anos de existência, uma nova sala de cinema acolherá espantosas aventuras, dramas, gargalhadas, emoção, enfim, todos os segredos e revelações de uma arte puramente encantatória e ainda com tudo para dar. Dado este passo, e continuando o ciclo Charles Chaplin, nada melhor do que estrear um grande ecrã com uma obra que só pode ser vista na sua máxima força em dimensões desmesuradas, pois assim ela foi pensada e concretizada, de onde a demanda dos executantes do filme, dos protagonistas e dos próprios espectadores remete a todo o momento para uma experiência física que se perfaz plenamente no insubstituível gigantismo onde bate e se transfigura a fonte de luz primordial da sala escura. 

Em 1925, data de estreia do filme que seguidamente veremos, os grandes cineastas Americanos já tinham inventado o épico, com D.W. Griffith à cabeça e o seu The Birth of a Nation como paradigma; na Europa, o milionário Cabiria, de Giovanni Pastrone, dois anos antes do grande “patrão” americano ter apostado tudo na visão do nascimento de um tão convulso país, já tinha feito aparecer o grande fresco histórico e, por consequência, a monumentalidade possível numa arte nova que a isso se prestava. Por essa altura John Ford estreava The Iron Horse sobre o nascimento das inacreditáveis linhas férreas e Cecil B. DeMille já tinha dado o tiro de partida para a sua poesia bíblica e maior do que o ecrã; por outro lado, Griffith refugiava-se em melodramas íntimos onde seres fugitivos podiam chegar da grande paisagem mas se escondiam em quartos. The Gold Rush combina a grande e a pequena escala, o épico carregado de efeitos especiais que hoje está na saga Star Wars e a pequena história de amor, de costumes e de destino que poucos ainda cultivam, sendo James Gray por ventura o mais precioso. 

Inspirado na febre do ouro do Klondike, Chaplin, já detentor de grandes meios e autoridade, começou mesmo por se aventurar na Sierra Nevada ela mesma, atirando-se à fera da natureza como muitos anos depois aventureiros inconscientes como Werner Herzog ou Francis Ford Coppola fariam, tocando a loucura; mas como veremos no filme as forças da natureza nunca ninguém as deteve, e o realizador teve de se recolher nos estúdios para chegar às proezas técnicas e estéticas que marcariam um antes e um depois: a fúria incontrolável dos ventos e da neve com os homens no centro do turbilhão a bailarem ao Deus-dará, a casa oscilante em equilíbrio trágico-cómico, a morte do criminoso Black Larsen. Mas se Chaplin é um inventor de formas, um pioneiro da mecânica e da pura ilusão cinemática e circense, o seu poder de figuração encontra aqui um ponto de chegada, um risco e um inesperado que hoje confunde todas as cronologias: em tempo de vanguardas e de não-definição que o começo dos anos 20 do século passado trouxe à história da arte em geral e também marcadamente ao cinema – de Marcel Duchamp a Man Ray, passando por René Clair – e poucos anos antes de Un chien andalou de Luis Buñuel, já Chaplin fazia curto-circuito na narrativa e na sua lógica de causa-efeito para nos oferecer largos momentos de puro delírio ou transformar um vagabundo num grande galo sob a demência da fome. 

The Gold Rush é um espanto a todos estes níveis e um nunca mais acabar de surpresas, à imagem do famoso plano da fila humana que troca o amor à vida pelo brilho possível do ouro tentando vencer o inferno gelado da montanha a perder de vista, breve cena que compacta essa loucura animalesca justificando por si a invenção do cinema, numa vertigem sensorial que a literatura ou a pintura só de outro modo podem escancarar. Mas no meio de tantos truques o que Chaplin nos prova, frontalmente, subtilmente e de corpo inteiro, é que o maior efeito especial continua a estar na imaginação e no mundo interior de cada homem. Por isso a dança dos pãezinhos ou o suculento cozinhado das botas tem uma graça e uma luz que emana dos seus mágicos artistas que ao mesmo tempo que “rivaliza” com as ilusões impossíveis nos faz perceber que esses impossíveis foram feitos pelos mesmos mestres do pequeno teatro, do pequeno gag, da pequena nuance. Homens, em primeiro lugar, e não máquinas anónimas, preparando já terreno para o Modern Times que veremos brevemente. 

Mas outra das coisas que continua a impressionar cada vez mais a cada nova visão é a maneira como da máxima inverosimilhança – seja das situações, seja do modo como se chega ao final feliz no barco onde tudo se une – se encontra a máxima nitidez, se acredita sempre, se chega ao fluido movimento da realidade que é por excelência o movimento desta arte. Serge Daney disse certo dia que somente pelo movimento se percebia tudo em Kenji Mizoguchi - das lendas e bruxarias à ancestralidade – e o que acontece em Chaplin, e mais do que nunca neste filme que passa da febre da ganância nos altos à febre do poder e do sexo em salões manhosos de ampla sociedade, terminando em águas que nos seus filmes tanto podem ser de ninguém e de liberdade como de aprisionamento, é dessa ordem: percebendo-se que a interacção dos seres com o meio é deste mundo e não fazendo batota, não suavizando os vagabundos dentro do salão ou a fronha dos poderosos, consegue-se depois acreditar no extraordinário, seja na casa sobre o precipício, na redescoberta do ouro ou na aparição milagrosa da mulher; isso, e evidentemente um olhar e uma pesquisa, uma compreensão e uma elevação moral que permite sempre achar o ângulo justo, a luz adequada, o ritmo e a sucessão das cenas sem margem para dúvidas, o andar fugitivo e o brio do solitário prospector e depois a atrapalhação e a relativa indistinção quando se torna milionário, enfim, a impertinência inicial da mulher e o seu coração a guiá-la para a verdade do seu sonho, a sua graça. 

Chaplin, muitos anos depois de ter feito este filme, quando chegou a colocar comentários por cima da imagem e a arrancar uma banda-sonora que não diminuiu o assombro visual mas antes se fundiu harmonicamente com ele – as notas colando-se à luz ou havendo luta mútua – confessou que seria por The Gold Rush que gostaria de ser recordado. Da montanha mais alta e da solidão mais aguda para o quarto da juventude e do mundo interior, uterino – e A Countess from Hong Kong, o seu último opus, seria isso na sua totalidade – eis o movimento necessário e talvez salvador. O incomensurável ou o minúsculo, no maior ecrã do mundo. Assim seja feita a sua vontade.

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