terça-feira, 4 de junho de 2019

133ª sessão: dia 6 de Junho (Quinta-Feira), às 21h30


Em Junho, encerramos o ciclo de homenagem a João Bénard da Costa com três filmes em que participa como actor ou cuja vida e cujos textos são o próprio tema da obra. O primeiro vai ser já esta semana e é uma conversa entre Bénard da Costa e o realizador Manoel de Oliveira filmada por Rita Azevedo Gomes, que nos apresentará o filme em vídeo. Em A 15ª Pedra, a nossa próxima sessão, estes dois grandes nomes da cultura portuguesa juntam-se para falar sobre cinema, pintura, a vida e muito mais...

Em entrevista a Álvaro Arroba em 2013 (para a publicação Cinema Comparat/ive Cinema), e sobre Manoel de Oliveira, Azevedo Gomes disse que "(...) o Manoel tem uma coisa muito dele e que lhe vem de dentro. Não é por acaso que filmou assim a primavera, com a cerimónia, o ritual e o teatro… Ele diz muitas vezes que o cinema é o teatro filmado. Eu não sei se é. Acho que o cinema é o cinema. Mas ele parte muito dessa representação. Uma vez, tive uma conversa com ele para um filme que fiz e disse-me que a representação da vida, coisa que também diz em A 15ª Pedra (2007), é aquilo que nos distingue: temos a necessidade de representar a nossa vida, não há outro bicho que se queira representar. Temos esta necessidade de contar, que vem dos Gregos, da oratória e da escrita… A necessidade de narrar feitos heróicos ou dos deuses, a necessidade de transmitir a vida é uma coisa extraordinária e vem tudo daí. O Manoel vem dessa linha directa: da representação, primeiro a oratória, de contar a história. Depois, de representar a história com actores a representar papéis, em vez de ser só um orador. Depois vem o teatro e depois o cinema. Acho que para ele é uma coisa depois da outra. E, portanto, a relação dele é em primeiro lugar com essa origem."

Na mesma entrevista, e sobre as diferenças entre os dois conversadores, a realizadora disse que "também há um aspecto importante e é que o João nunca contradiz o Manoel, nunca se permite pôr em questão o que ele diz, por respeito. Quando fiz o filme não queria fazer perguntas nem entrar em cena, como é óbvio. Mas a dificuldade nessa rodagem era que a conversa não se tratava única e exclusivamente sobre a obra do Manoel. Esta tendência podia ter sido muito natural: a grande entrevista a Manoel de Oliveira, o realizador. Mas não era essa a minha ideia. Queria captar a relação entre ambos e, para isso, tive que ir sugerindo de alguna maneira os temas com que conduzir a conversa. Ou seja, que falassem de pintura, do Japão… para que não ficassem só a falar dos filmes do Manoel. É algo que se conseguiu mais ou menos no filme: contam histórias, anedotas, falam de cinema, falam da vida, enfim… O João tem esse ar muito coloquial de falar, é como se estivesse a comer sentado à mesa e a falar contigo, sabes? Por seu lado, o Manoel não. O Manoel está sempre com mais atenção ao que diz, sempre com humor, também. Além disso, acho que o Manoel, quando ouve o João, já está a pensar no que vai dizer a seguir. É muito perspicaz porque, às vezes, se nos dermos conta, o que ele diz a seguir não complementa. Ele pensa no que é importante dizer a seguir e leva assim a conversa para onde quer. Mas foi esta coisa toda que eu deixei desenvolver e que não se calcula. E depois, também há uma coisa de que não nos podemos esquecer e é que eles estão fartos de falar das mesmas coisas durante toda a vida. No entanto, de repente, o que é interessante no filme, é que acabam por dizer coisas que nem sequer tinham previsto, seja a questão da 15ª Pedra, ou a dos signos de Dreyer e o tempo. E o outro diz «Ah, é verdade, nunca me tinha dado conta disso!»."

Na secção dedicada a Rita Azevedo Gomes inserida no livro Novas & Velhas Tendências no Cinema Português Contemporâneo (2013), Susana Sousa Dias escreve sobre o filme desta semana, dizendo que "A 15ª Pedra consiste numa longa conversa entre o realizador Manoel de Oliveira e João Bénard da Costa: abre-se espaço para uma entrevista livre, que se assemelha a uma conversa descontraída (ainda que perscrutada pela câmara), na qual Bénard da Costa vai lançando perguntas. De entre alguns dos temas abordados – todos eles remetem directa ou indirectamente para o cinema – estão a juventude e a beleza, a educação, o aparecimento da cor e do som no cinema, bem como histórias pessoais como aquela que dá nome ao documentário em questão (contada por Oliveira).

"O aspecto mais singular deste documentário radica no rigor formal e estruturalizante em que assenta: é sobre o discurso e as flutuações deste que recaem todas as atenções, havendo como que uma organicidade na forma como o documentário é filmado e montado, quase matemática, e que depõe uma crença ilimitada no conteúdo do plano e na gestão da atenção dentro do mesmo. Para melhor ilustrar estes traços optamos desde já por enunciar as sequências que compõem o documentário: este abre com um plano que enquadra Oliveira e Bénard, num plano americano, sentados lado a lado – o primeiro à direita, o segundo à esquerda. Sem cortar, a câmara faz zoom in e reenquadra Oliveira, redefinindo o enquadramento (rosto de Oliveira no centro da imagem, 3⁄4 de frente) e sem se interromper a conversa. Passado momentos a câmara faz uma panorâmica esqueda-direita, para Bénard da Costa, que está de perfil, e o plano mantém-se nele. Sem nunca cortar (reforçamos), há um zoom out e novo reenquadramento que dá origem ao primeiro plano do documentário."

O nosso amigo Sérgio Alpendre descreve apaixonadamente a obra de Rita Azevedo Gomes para a Revista Interlúdio, escrevendo que "se há uma cinematografia que nos pode ensinar muito neste século, esta é sem dúvida a cinematografia portuguesa. Pode-nos ensinar sobretudo que é possível fazer filmes densos, carregados de literatura e teatralidade, e ainda assim repletos de cinema. Podem-nos ensinar, contudo, até certo ponto. Não é da formação brasileira essa literalidade e, portanto, quando ela aparece num filme brasileiro, há o grande risco de ser falso, forçado, ridiculamente superficial. Justamente algo que nos portugueses é natural. Eles falam poeticamente, nós falamos pragmaticamente. A formação europeia, nesse caso, faz toda a diferença. Há nos grandes filmes portugueses uma sincera impostação. Tão sincera que essa sensação de impostação é uma sensação que nós, brasileiros, sentimos. Eles provavelmente não pensam assim. Lembro-me sempre da história do meu grande amigo José Damiano, que, ao esperar pelo início de uma peça em Portugal, com atraso de apenas 3 minutos, ouviu de um espectador atrás dele a seguinte frase: “o rigor da hora já se perdeu”. Pois bem, tal frase é natural para os portugueses. Talvez nem tanto para os mais jovens, mas o certo é que nas ruas portuguesas ouvimos muito frases assim, cheias de beleza, poesia, literatura. É justamente isso que quero dizer. Essa formação rica, literária, poética, está impressa nos grandes filmes feitos em terras lusitanas.

"Os filmes de Rita Azevedo Gomes, desde o primeiro plano da sua primeira e oliveiriana longa – a câmara aproxima-se de uma janela que separa um escritório de um jardim em O Som da Terra a Tremer – são constituídos por essa riqueza de formação. Deles, por trás das camadas literárias e teatrais (no que um é decorrência do outro), pode-se reter um realismo que não se vê todos os dias, ou melhor, raramente se vê. Não se vê, sobretudo, nos neo-neorrealistas do novíssimo cinema brasileiro, que só nos dão uma parca impressão de realidade. E é irónico porque realidade parece ser tudo o que buscam os nossos jovens cineastas. Rita (chamá-la-ei assim, para não confundirmos os sobrenomes) não parece perseguir a realidade a todo o custo. Pelo contrário: os seus filmes são tomados pelo irreal, pela fantasia, pelo efeito. No entanto, quanta realidade vemos neles. Seja nas meninas que se separam deixando o cachorro imóvel e sem saber quem seguir (Frágil Como o Mundo), na conversa filmada entre um crítico e actor e um cineasta consagrado, e na forma como a direção enquadra ora quem fala, ora quem ouve (A 15ª Pedra), na história trágica de amor adúltero contada por uma duquesa (A Vingança de uma Mulher), no interesse de um alfarrabista numa coleção que não existe (A Colecção Invisível), ou em tantos outros momentos espalhados nos seus filmes. O que acontece é que essa força da realidade torna ainda mais fortes os momentos líricos, mágicos, da mesma forma que uma canção mais simples prepara o clima e os nossos ouvidos para uma mais ambiciosa, ou que um allegro ou um andante nos deixam mais vulneráveis à incrível beleza de um adágio."

Até Quinta!

Sem comentários:

Enviar um comentário