por Luís Miguel Oliveira
TERROR DE TE AMAR
Um amor adolescente, sem tempo e sem espaço, foge para a floresta encantada dos contos de fadas. Frágil como o Mundo, de Rita Azevedo Gomes, também é assim: singular e solitário. Mas as suas razões para existir estão expressas em cada plano.
Frágil como o Mundo é a segunda longa-metragem de Rita Azevedo Gomes, mais de dez anos depois de O Som da Terra a Tremer, uma primeira obra que nunca conheceu estreia comercial nem conseguiu furar uma reduzidíssima visibilidade. Frágil como o Mundo será, portanto, para a generalidade do público, a descoberta de um universo próprio e original - pelos caminhos percorridos por Rita Azevedo Gomes neste filme, talvez só tenha andado algum João César Monteiro.
Frágil como o Mundo traz um universo feito de uma fusão de imaginários, onde se misturam o romantismo sofisticado e as lendas populares, o cinema e a poesia, a realidade e o sonho. É um filme que inventa um tempo e um espaço - "o cinema é o sítio certo para representar a coexistência das pedras e dos fantasmas", diz a realizadora, e essa coexistência é das impressões mais fortes que o filme deixa.
A história contada é a de um amor adolescente, um rapaz e uma rapariga que gostam um do outro mas não podem estar juntos, pelas mais diversas razões. Vêem-se, também eles, obrigados a "inventar" um tempo e um espaço - uma espécie de fuga para a floresta, encantada como nos contos de fadas. Mas também isso deixa de ser suficiente, e tudo tem que passar para um tempo e um espaço já para lá de qualquer realidade física, já para lá dos corpos: a morte, como território de sonho, como lugar de uma harmonia finalmente tornada possível.
Diz Rita: "Este filme já andava a trabalhar comigo há muitos anos. Talvez desde 1993, através dum recorte de jornal. Uma notícia sobre um casal de miúdos que apareceu morto, com uma fotografia enorme de uma azinheira no Alentejo - aparentemente não havia nenhuma razão para eles se matarem, portanto não havia nenhuma resposta, ficava tudo em suspenso. Não havia sangue nem qualquer sinal de violência. Havia um enigma, um mistério".
E "a partir daí, claro que tudo vem ter connosco".
Encontros. "Tudo vem ter connosco" - para Rita Azevedo Gomes Frágil como o Mundo é um filme feito de "encontros" ("como na vida, os encontros dão-se ou não se dão"). Encontro com memórias pessoais, encontros com "coisas" que a acompanhavam e a acompanham desde há muito. Como a poesia: "O poema da Sophia [de Mello Breyner] que dá nome ao filme também já estava 'escolhido' antes. É do que trata o filme, 'terror de te amar num sítio frágil como o mundo'. São coisas que nos acompanham a vida toda, situações que já vivemos antes de elas realmente acontecerem, como a realidade dos sonhos...".
Sophia dá o mote para o filme, mas a Menina e Moça de Bernardim Ribeiro também ocupa um lugar fundamental: "Tive a sensação estranha de que Bernardim Ribeiro escreveu isto para mim, para este filme... é um dos tais encontros. Eu sabia o que é que ia dizer, andava à procura de uma voz, e de repente apercebo-me que já estava escrito, pelo Bernardim".
Mas ainda há o cinema, e se Frágil como o Mundo não é um filme de cinéfilo na acepção mais redutora do termo, se não há "citações" nem piscadelas de olho à erudição do espectador, é um filme que parece conservar uma memória, uma lembrança, de muitos dos filmes de que a realizadora gostou e que a acompanham: um pouco de Werner Schroeter (foi quando viu Eika Katappa, nos anos 70, que Rita Azevedo Gomes percebeu "que o cinema também servia para isto", e mais tarde trabalhou na rodagem de O Rei das Rosas), um pouco de John Ford (a casa dos avós, filmada com aquele sentido de comunidade simultaneamente austero e caloroso), um pouco de A Sombra do Caçador (e de todos os seus ascendentes, provavelmente até chegar a Nosferatu), um pouco de Elia Kazan ("consigo imaginar-me facilmente a sair do Império, tinha 13 anos, impressionadíssima com o Esplendor na Relva").
Tudo isto está no filme (e ainda se poderia falar da música e da pintura) como recordações mais ou menos vagas, trabalhadas como se se passassem a inscrever numa simbologia pessoal e intransmissível - o que quer dizer que nunca se sente nem o seu peso nem o peso de uma "caução", mas que tudo se organiza, tudo se torna orgânico e faz parte de um mesmo corpo, indivisível e irredutível em parcelas. Para se perceber bem o que isto quer dizer, atente-se por exemplo nos belíssimos planos do corpo da rapariga a boiar rio abaixo, enquanto a narração em "off" diz um excerto de Bernardim Ribeiro.
Perdas. Ao mesmo tempo, Frágil como o Mundo é marcado por uma fortíssima impressão de perda. O plano inicial, uma panorâmica (ainda a cores, antes de se mergulhar no preto e branco) que "varre" o interior de uma casa em ruínas, remete para um passado longínquo: "Essa panorâmica é uma pergunta: 'onde é que está?'. Não quero acreditar muito que se perdeu, tem que estar algures no meio das ruínas. Como a frase que se ouve mais à frente: 'não sei como será o amor daqui a mil anos', mas será. Não acredito que as coisas se percam, acho que há é um esquecimento, como se estivéssemos esquecidos de alguma coisa".
Um filme sobre a memória, sobre a necessidade de lembrar para recuperar? "O cinema é o sítio certo para isso", volta a dizer Rita, e Frágil como o Mundo lança-se, a partir desse plano inicial, numa espécie de tempo suspenso, que ou não é tempo nenhum ou é o tempo todo; é um tempo de cinema, desordenado e virado do avesso, um tempo que tem a mesma realidade do tempo dos sonhos e do tempo das memórias. "O que é que é mais verdade?", pergunta Rita, "a lenda da princesa moura ou a pedra onde se sacrificavam carneiros? É importante que o filme seja a preto e branco, como maneira de fazer coexistir, ou de reunir, essas duas realidades".
Aparentemente, Frágil como o Mundo também é um filme onde existe uma relação com as coisas bastante mais serena do que em O Som da Terra a Tremer. "Uma relação mais serena, não sei. Talvez haja maior consciência... Por um lado, será mais sereno, por outro levanta outra vez um turbilhão de coisas que estava em repouso. Uma maior consciência do que estava a fazer, das relações entre as coisas que estava a trabalhar. Neste aspecto há um olhar diferente, tenho mais a noção do que é que estou a ver".
Para a realizadora, os dois filmes são obviamente diferentes, mas mantêm uma relação estreita: "Têm a ver comigo, têm a ver com a minha evolução por um lado e com a minha estagnação pelo outro. Não os desligo, nem percebo o que são os dez anos entre os dois. Havia uma espécie de chaga aberta em relação ao outro, que ficou um bocado apaziguada por ter feito este. Uma chaga que tinha a ver com o que aconteceu ao filme, mas não só; também tinha a ver com as questões que estavam nele. Havia coisas que, por um lado, ganhavam distância, mas por outro não me largavam, como alguém que nos morreu mas que ainda cá está".
Talvez seja essa "maior consciência" aquilo que permite que Frágil como o Mundo ouse entrar nos terrenos mais delirantes, optar pelas soluções mais arriscadas, sem nunca perder o pé e sem que nunca se esvaia a sensação de uniformidade e de justeza - como na formidável série de planos em que, por intermédio das mais elementares e ancestrais trucagens (fundidos e sobreposições), se inventa um mundo de flores e de fantasmas.
"Eu sei porque é que as coisas lá estão. Há uma razão minha, pode ser completamente solitária e não servir para nada, mas há uma razão minha"
Quanto ao filme, também não há dúvida que é completamente solitário, e provavelmente vai sofrer por isso. Mas as suas razões para existir estão expressas em cada plano. E há-de haver gente a quem essas razões sirvam para alguma coisa. Isso, somos capazes de apostar.
in “Terror de te Amar”, Ípsilon, 20 de Julho de 2001.
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