quarta-feira, 12 de maio de 2021

Only Lovers Left Alive (2013) de Jim Jarmusch



por Alexandra Barros

Os vampiros Adam e Eve estão unidos como casal há muito, muito tempo. Séculos, literalmente. E são séculos de história, arte, ciência e cultura em geral, o que os alimenta (além do obrigatório sangue). Há até uma cena com um frigorífico cheio de ... livros. Adam dedica grande parte do seu tempo à música. É nostálgico e rodeia-se de objectos de épocas passadas, rejeitando o “progresso” e tecnologias recentes (como, por exemplo, telemóveis). Os instrumentos que toca e coleciona limitam-se aos acústicos, guitarras vintage e equipamentos de electrónica analógica. Nada de CDs ou ficheiros digitais, claro. Colecciona vinis e grava a música que cria em fita (magnética) K7. Eve é apaixonada pela leitura. Para as suas viagens, enche as malas só com livros (apesar de se apresentar sempre maravilhosamente vestida). Lê em diversas línguas, a uma velocidade sobre-humana, e descobre a idade dos objectos tocando-lhes. 

Eve e Adam são vampiros não predadores. “Drenar” (sangue) com moderação, sem matar a “fonte”, ainda é considerado aceitável. Beber desregradamente é bárbaro e, além disso, pode matar, pois a maior parte dos zombies (aka humanos) têm o sangue “contaminado” (poluição, drogas, ...). A irmã de Eve adoece após beber o sangue de Ian (a ligação de Adam ao mundo dos zombies). “What did you expect? He’s from the f***ing music industry!”, diz Eve. Para evitar consumir sangue contaminado com drogas, Adam compra sangue “puro” a um médico corrupto, como se comprasse droga a um dealer

Adam e Eve vivem em cidades distantes, Detroit (EUA) e Tânger (Marrocos), respectivamente, mas Eve vai ao encontro de Adam quando se apercebe que ele está profundamente deprimido. Adam é um hipster auto-centrado e cheio de auto-piedade, cujas desilusões com o comportamento dos zombies se transformaram em depressão e últimamente em pensamentos suicidas. Eve, com mais séculos de vida que Adam, tem afinidades com o realizador do nosso ciclo anterior, Ozu: sim, a desilusão é inevitável, mas a vida tem ainda assim muitos prazeres para oferecer: apreciar a natureza, cultivar a amizade e a amabilidade, dançar, amar e ... sorvetes de sangue (“blood on a stick”). É aliás o prazer da música que reaviva Adam quando este está prestes a desfalecer de “fome”, no final do filme. Adam assiste a uma actuação de Yasmine Hamdan e fica fascinado. Quando Eve afirma que Yasmine será muito famosa, Adam responde que espera que não, pois é boa demais para isso (a mais explícita declaração de snobismo hipster). 

É típico de Jarmusch utilizar nos filmes: citações literárias, linguagem e enunciados científicos e muitas referências a artistas, cientistas e outras figuras culturais. Alguns músicos amigos participam mesmo nos filmes: John Lurie, Tom Waits, Jack White, Iggy Pop, .... Neste há actuações da banda White Hills e da música libanesa Yasmine Hamdan. As referências culturais são imensas. Além dos recorrentes Jack White e Nikola Tesla (cientista/inventor): (os cientistas) Pitágoras, Galileu, Copérnico, Newton, Einstein, Fibonacci, (os escritores) Shelley, Byron, Shakespeare, (o dramaturgo) Christopher Marlowe, (o compositor) Schubert, (o músico) Eddie Cochran. Foi Adam que criou o Adagio para o Quinteto de Cordas de Schubert e lho ofereceu. De acordo com Eve, foi a companhia dos poetas Shelley e Byron, de quem Adam era amigo, que contribuiu para o seu carácter depressivo. Adam não está ligado à rede de distribuição de electricidade geral (está “off-the-grid”). Gera a sua própria energia num equipamento inspirado na transmissão de energia sem fios, teorizada por N. Tesla. Explica a Eve física quântica, nomeadamente partículas entrelaçadas: quando duas partículas entrelaçadas são separadas e afastadas, mesmo que colocadas em extremos opostos do universo, respondem instantâneamente ao comportamento uma da outra. Einstein chamou a este fenómeno “spooky action at a distance”. Eve é amiga de Christopher Marlowe, que também é vampiro e, além das suas obras, escreveu secretamente as atribuídas a Shakespeare. Eve refere-se à fauna e flora pelos seus nomes científicos (sistema de classificação do botânico e zoólogo Lineu). Existem duas cenas particularmente carregadas de “heróis”: uma em que Eve escolhe os livros que levará na mala de viagem e outra em que olha para os retratos pendurados na casa de Adam (http://draculahistoryandmyth.com/only-lovers-left-alive-adams-wall-heroes). 

Tudo está carregado de simbolismo. Por exemplo, a música inicial, “Funnel of Love” de Wanda Jackson, é uma escolha típica de um nerd musical. Lançada num lado B, em 1961, tornou-se entretanto uma favorita de connoisseurs de r&b e country. Outros exemplos mais óbvios: a fonte (gótica) escolhida para o genérico, o nome das personagens, as cidades onde vivem. Tânger é uma cidade com uma herança cultural e histórica riquíssima, que assume a sua decadência como característica distintiva e apelativa para determinado tipo de viajantes. Tem sido local de passagem, mais ou menos prolongada, para “outsiders” ocidentais, desde que Burroughs and Bowles aí viveram na década 1950. Detroit, cidade que cresceu à custa da indústria pesada e automóvel, foi a maior das cidades americanas que faliu após a crise financeira e económica de 2008. À escala dos EUA, é também uma cidade histórica e culturalmente rica. Na altura em que o filme foi feito, Detroit estava em plena fase decadente, com a indústria e o esplendor de outrora arruinados. O filme foi lançado no ano em que a cidade declarou falência. Adam leva Eve a dar uma volta por paisagens urbanas abandonadas. Tristes e belas como o mundo de Roberto em Down By Law (“It’s a sad and beautifiul world.”). O mais belo e triste local que visitam é o Michigan Theater. Outrora uma faustosa sala de espectáculos, foi transformado num parque de estacionamento e é o ícone perfeito desta Detroit e da estética e espírito do filme. Adam sente-se derrotado pelos acontecimentos actuais, mas Eve, uma criatura (da noite) luminosa, com “lust for life”, adapta-se às mudanças e é o seu instinto de sobrevivência que mantem os dois amantes vivos, como partículas entrelaçadas.

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