por Alexandra Barros
Jim Jarmusch disse um dia que talvez andasse sempre a fazer o mesmo filme. Há, pelo menos, muitas rimas entre os seus filmes e apontámos algumas entre Paterson e Only Lovers Left Alive. Entre este e Gimme Danger também há rimas cruzadas. Regressamos a Detroit, ao meio musical e ao Lust for Life (nome do segundo álbum de Iggy Pop).
O nome do filme vem de uma música dos Stooges, banda formada por Iggy, no final dos anos 60. Iggy quis que a história dos Stooges fosse contada e escolheu Jarmusch, grande fã da banda e de quem Iggy é amigo desde a década 1990, para o fazer. A música é, desde sempre, uma parte importante da vida de Jarmusch. Tocou com vários músicos e pertenceu a várias bandas. Actualmente faz parte da banda SQÜRL (que colaborou com Jozef van Wissem na banda sonora de Only Lovers Left Alive e fez a banda sonora de Paterson). Facilmente se depreende a importância que a música tem para Jarmusch do seu inconfundível visual (corte de cabelo e roupa) rock’n’roll e dos seus filmes, onde a música nunca é um acessório, antes um dos ingredientes principais. Além disso, são muitos os músicos que deles fazem parte, representando-se a si próprios ou não: John Lurie, Screamin’ Jay Hawkins, Joe Strummer, Tom Waits, Neil Young, Jack e Meg White, GZA e RZA, White Hills, Yasmine Hamdan, Method Man, entre outros. Iggy participou em dois filmes: Coffe & Cigarettes e Dead Man.
Os Stooges formaram-se em 1967. Fizeram três álbuns seminais para a música contemporânea e particularmente para a música punk: The Stooges (1969), Fun House (1970) e Raw Power (1973). A influência que tiveram na revolução punk, que aconteceria uns anos depois de terminarem (em 1974), é invocada no filme. Apesar do movimento punk e do meio musical underground terem sempre reconhecido a importância dos Stooges, só quatro décadas depois do lançamento daqueles três icónicos álbuns é que mereceram aclamação “generalizada”.
Tiveram várias reencarnações, mas a obra mais relevante foi toda feita durante a primeira fase da banda, entre 1969 e 1974. Terminaram nesse ano por causa dos problemas de Iggy com a heroína. Como o próprio diz, às vezes conseguia cantar, nos concertos, outras vezes não. Com devoção declarada por niilismo, caos, destruição e uma tendência para a auto-sabotagem, os Stooges assumiram-se como a antítese do movimento flower power. O filme mostra uma entrevista num canal de televisão, em
que, em resposta à pergunta “Pensa que influenciou alguém?”, Iggy responde ”Penso que ajudei a exterminar os anos 60”.
De acordo com a perspectiva do filme, a influência atribuída aos Stooges relaciona-se com uma nova abordagem à forma de fazer música, sem regras, deliberadamente contra-corrente (deliberadamente antimelódica, por exemplo), intensa e tensa, incorporando sons de aparelhos domésticos (aspirador, liquidificador, ...) e de instrumentos feitos pelos próprios e indo beber a uma grande variedade de géneros, de compositores avant-garde como Robert Ashley e Harry Partch aos blues de Chicago. Especialmente inspiradora para outras bandas foi a atitude de Iggy em palco, selvagem, energética e primal, e que viria a ser adoptada pelos músicos punk. As actuações em tronco nu, os saltos descontrolados, o crowdsurfing e a auto-mutilação serviram de modelo a esse movimento, apesar da posição anti-tudo de Iggy: “Não quero pertencer a nenhuma categoria de pessoas, não quero ser alternativo. Só quero ser.”
Paradoxalmente, ou não, Jarmusch optou por fazer um documentário convencional, contando de forma linear e por ordem cronológica a história da banda, e do contexto em que surgiu, desde a infância de Iggy até ao reconhecimento global. O documentário centra-se em testemunhos dos membros originais da banda intercalados por: imagens de arquivo dos concertos e bastidores; excertos de clássicos do cinema e da programação televisiva americana; episódios do percurso dos Stooges contados em formato animação. As entrevistas são, porém, o mais interessante. Iggy é um excelente contador de histórias e o seu carisma e entusiasmo são fascinantes.
Aos mais conhecidos episódios de provocação e controvérsias, juntam-se outros surpreendentes. Particularmente relevantes são as declarações sobre a origem do som e identidade dos Stooges e da performance de palco de Iggy. O responsável pelo seu estilo de escrita, por exemplo, foi um apresentador de programas televisivos infantis (Soupy Sales) que convidava as crianças a enviar cartas, mas pedia para limitarem as mensagens a 25 palavras. Da infância, Iggy aponta também como influências: o palhaço anarquista Clarabell do Howdy Doody Show e os sons industriais das fábricas do Michigan, onde cresceu. Da adolescência, as bandas de blues de Chicago. Mais tarde, Sun Ra e Harry Partch. Nesta altura, os elementos da banda viviam juntos, numa comunidade que poderia ser considerada comunista, de acordo com Iggy. Tudo era partilhado de modo igualitário, do dinheiro à autoria das canções. Porém, Iggy não estava interessado em actividades políticas ou em ser activista, distanciando-se de John Sinclair (manager dos MC5) e da pressão que este exerceu nesse sentido. Os paradoxos e interesses ocultos do flower power e outros movimentos da época “cheiravam mal”, segundo Iggy, apontando ainda que: "Some of the biggest peace/love acts of the California five years of love were created in meetings".
Segundo a revista musical Pitchfork, este documentário deixa claro que o punk está enraízado tanto em inteligência como em instinto. À presença física primal e excêntrica de Iggy, estava aliado um lado cerebral, visível nas inspirações e motivações assumidas, incluindo (e com particular relevância) aquilo que os Stooges rejeitavam.
Muitos cinéfilos consideram que este é o menos jarmuschiano e o mais convencional filme do realizador. Sê-lo-á possivelmente na forma, mas no amor e identificação com a “matéria” não podia ser mais Jarmusch. Como o próprio afirmou é “uma carta de amor”.
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