por Alexandra Barros
Tal como o filme da semana passada (Only Lovers Left Alive), este passa-se numa cidade americana decaída, que outrora foi um importante pólo industrial: Paterson (aka Silk City), New Jersey. Também tem como personagens principais um casal que se ama: Paterson (que partilha o nome com a cidade) e Laura. A Detroit de Only Lovers Left Alive é uma cidade em ruínas, abandonada, mas com o esplendor do passado ainda visível. Paterson não parece ter nenhum desse charme decadente. Aparenta ser uma cidade pacata e sem encantos notáveis para além das suas cascatas (Great Falls).
Paterson tem uma vida simples e tranquila como a da cidade. Rege-se por rotinas diárias, cumpridas rigorosamente. Acorda todos os dias à mesma hora, beija Laura, vai trabalhar, almoça num banco em frente às Great Falls, regressa a casa, janta, vai passear Marvin (o cão do casal), bebe sempre e só uma cerveja no bar local, regressa a casa. Ganha a vida como motorista de autocarros, mas aquilo que o define é o que faz quando não está a trabalhar: poesia. Aliás, é poeta a tempo inteiro, está constantemente a absorver a matéria com que faz os poemas.
É a rotina que dá a Paterson espaço para se focar na contemplação do que o rodeia. Traz sempre consigo um caderno, onde o familiar e (aparentemente) banal, olhados como pela primeira vez, são transcritos como poemas. A caligrafia de Paterson vai-nos aparecendo sobreposta aos locais onde são escritos os poemas, ao ritmo a que são escritos no caderno. Paterson encontra poemas em todo o lado. Nas moléculas que se desviam para lhe dar passagem ou numa caixa de fósforos. No início do “Love Poem”, uma caixa de fósforos e o seu conteúdo são descritos em termos objectivos e precisos, a escrita torna-se progressivamente metafórica e quase a terminar: “I become the cigarette and you the match”.
Laura não tem rotinas, tem padrões. Ou melhor, preenche o seu mundo com padrões (a preto e branco): cortinas e cortinados, guardanapos, louça, roupa, bolos. Anda à
procura da sua vocação e aplica a sua energia criativa nas tarefas domésticas: faz experiências gastronómicas, costura a sua própria roupa e pinta os têxteis da casa e os seus vestidos com grandes círculos pretos e brancos. Tem dois projectos: tornar-se cantora country e ter um negócio de cupcakes com muito sucesso.
O preto e branco das decorações de Laura pode ser associado às diferenças de personalidade dos membros do casal. Paterson é regrado, contido e com uma relação com o mundo essencialmente interior. Laura é espontânea, sonhadora e deseja partilhar com os outros as suas criações (seja música ou bolos). Também nos vampiros Adam e Eve havia traços de personalidade opostos que, no caso, estavam representados simbolicamente nas roupas claras de Eve e escuras de Adam. No entanto, nos dois casos, os membros do casal aceitam as diferenças mútuas e compreendem-se apesar delas.
Tal como outros filmes de Jarmusch, este está cheio de “homenagens”. Desta vez abrangem: os comediantes Abbott and Costello, Jimmy Vivino, o boxeur Rubin “Hurricane” Carter, o anarquista italiano Gaetano Bresci, o músico Iggy Pop, a cantora country Tammy Wynette, o rapper Method Man (que se representa a si próprio, no filme), os escritores Dante, Emily Dickinson, Allen Ginsberg, William Carlos Williams, Frank O’Hara e o pintor francês Jean Dubuffet, entre outros.
Tal como o vampiro Adam, Paterson rejeita telemóveis, pois sentir-se-ia atrelado se usasse um. Para o músico e para o poeta, o acto criativo é necessário e natural. Nem um nem outro estão interessados em mostrar ao mundo o que fazem e o que fazem não se destina a obter aprovação e reconhecimento alheios. Apesar disso, quando Marvin destroi o caderno de poemas, Paterson fica bastante abalado. Procura consolação nas Great Falls e encontra-a graças ao encontro casual com uma alma gémea (de notar que Paterson repara em diversos pares de gémeos biológicos ao longo do filme).
Um turista japonês pede para se sentar junto a Paterson para contemplar as quedas de água e ler William Carlos Williams. Este poeta viveu nas proximidades de Paterson e deu o nome da cidade a um dos seus poemas mais conhecidos. O seguinte verso, pertencente a esse poema épico, é o mais adequado resumo do filme: “A man is indeed a city, and for the poet there are no ideas but in things”. Jarmusch parece ter transformado esse poema num filme e ter reforçado a metáfora do homem como uma cidade ao dar o mesmo nome da cidade ao poeta que a absorve para dela fazer poemas.
Também o japonês que se senta junto a Paterson diz respirar poesia. Admira os mesmos poetas americanos que Paterson e, além disso, também escreve poemas. Porém, só em japonês: “My poetry only in Japanese. No translation. Poetry in translation is like taking a shower with raincoat on.”. Quando o poeta japonês se despede, um acaso extraordinário (sobrenatural?) deixa-nos a pensar que talvez existam mesmo anjos da guarda. “Sometimes empty page presents more opportunities.”, diz ao oferecer um novo caderno a Paterson.
Tal como em Only Lovers Left Alive, onde pouco se parece passar, neste filme há pouca acção, drama e história, mas há muitas histórias, pequenas venturas e alegrias, emoção. É um prazer fazer novas descobertas sempre que se reveem.
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