quarta-feira, 12 de outubro de 2022

Zéfiro (1994) de José Álvaro de Morais



por João Acciaiuoli Catalão

«Eu acho que o essencial no cinema (...) não é a história, é a maneira como é contada ou os sentimentos e as emoções que ela nos causa, e a capacidade (que tem) de despoletar associações.» 

José Álvaro Morais 

O convite era para escrever sobre um filme. Que tem por título o nome de um vento favorável. Mas vou falar antes sobre uma ilha. Não a ilha que o filme também é, no arquipélago singular e rarefeito do José Álvaro Morais, mas a ilha em que este se tornou no meu próprio espaço identitário. Os filmes tornam-se ilhas quando os habitamos de alguma forma. Quando se rompe uma espécie de membrana permeável que os envolve. E eles se entranham e enraízam nas nossas vivências e memórias. Revi o Zéfiro em 1994 no Centro Cultural do Banco do Brasil no Rio de Janeiro. Onde existe uma espécie de cais de pedra circular a meio. Revi o filme com a presença do José Álvaro Morais, que o apresentou num ciclo dedicado ao cinema português. Tinha acabado de voltar ao Brasil nessa altura. E estava ainda bem presente a viagem que havia feito a Mértola. Pouco antes de embarcar para o Rio de Janeiro. Por causa do filme, que tinha visto em Lisboa. A Mértola e às Minas de São Domingos. O lugar mais próximo onde foi possível encontrar alojamento. Conjugaram-se assim nesse momento decisivo de inflexão a aura mítica que Mértola ganhara e as ruínas a céu aberto da mineração. Num contexto agudizado pela abertura da temporada de caça, que tinha tomado conta do hotel e das redondezas. Mértola é também um ponto de inflexão no filme viagem de José Álvaro Morais. É lá que se intercetam os dois planos condutores do filme. A viagem ficcionada em tons poéticos e a narrativa geográfica e histórica com que esta se entrelaça. Quando Luis Miguel Cintra, narrador de mapas e paisagens, transpõe o estúdio fechado e irrompe no castelo da vila, que foi reconstruída sobre os sedimentos de uma anterior comunidade islâmica. E a figura feminina a cavalo, que acompanha o percurso do jovem fugitivo em direção ao sul, ganha ali sepultura. Porque em Mértola estamos a três passos, ou a três irmãos como refere o filme, da antiga amálgama cultural existente na entrada do Mediterrâneo. A três passos de um estado de convivência harmonioso e tolerante entre os povos do sul da península que tanto fascina o olhar do realizador do filme. E o impele na sua saga de reedificação identitária do país. Antes da invasão devastadora dos reis cristãos do norte. Como defende o arqueólogo Cláudio Torres, que é consultor científico neste trabalho. Que foi recusado pela RTP por ter mais do que duplicado a duração prevista. E que foi por isso podado numa versão televisiva mais ligeira (Margem Sul, 1994). Segundo ele, a islamização desse território a sul do Tejo foi vinculada por mecanismos da paz e da cooperação e não por imposição guerreira. Que é a visão histórica que o filme assume e em que assenta estruturalmente. É apontado o quanto a génese dos trabalhos de José Álvaro Morais parte do plano pessoal e das relações de proximidade do realizador. Como a que cria com o Teatro da Cornucópia. E é referida igualmente a sua tenacidade face às adversidades que marcaram o seu percurso cinematográfico. Cujos projetos iniciais, depois de regressar a Portugal, e na sequência do exílio e formação em cinema na Bélgica, foram os documentários Cantigamente Nº 3, para a RTP, e Ma femme chamada Bicho, sobre o casal Arpad e Vieira da Silva, para a Fundação Calouste Gulbenkian. Ambos realizados através do Centro Português de Cinema. Ambos em que o diretor não foi a primeira escolha. Se já tinham decorrido quase sete anos entre a epopeia do leopardo de ouro no Festival de Locarno (O Bobo, 1987) e o nascimento do Zéfiro (1993), foi preciso aguardar outros tantos para ter lugar o parto do filme seguinte (Peixe-Lua, 2000). Um trabalho carregado de cor e conflito interior, onde pulsa o sangue de García Lorca. E que vai alargar a busca e a redescoberta desse sul musical e vibrante à Andaluzia. Ao lado de lá da fronteira, que é onde a viagem de Zéfiro termina. E faz esse percurso atravessando a ondulação das planícies com um veleiro atrelado num jipe. Que tem o mesmo nome desse filme anterior tão presente. Com a morte repentina de José Álvaro Morais a sua obra acaba por ficar precocemente concluída com o filme Quaresma de 2004. Num retorno premonitório ao norte natal e granítico da Covilhã. Por causa de um funeral de família. E é já outro vento que não o Zéfiro que impulsiona depois a turbulência passional da história até às eólicas bem alinhadas da costa da Dinamarca, na segunda parte do filme. Numa paisagem retratada de uma forma higiénica e fria. Que ganha uma leveza inesperada e quase libertadora na resignação parental com que o filme culmina. Zéfiro é a ilha primeira dessa trilogia que finaliza a obra e o universo cinematográfico de José Álvaro Morais. E encarna com poética e intensidade o fascínio do cineasta por Lisboa. Retratada no filme como um Mediterrâneo em miniatura. E como antecâmara para uma mítica afetiva do sul anterior à formação da nacionalidade. Um “sentimento difícil de explicar” como o filme sublinha. O realizador, que abandonou o curso de medicina em Lisboa, deve ter compreendido a dada altura que essa era provavelmente uma patologia sem cura. Senti um fascínio e uma exaltação semelhantes quando fui também viver para Lisboa. Antes da invasão do turismo. Por causa da cidade em si e pela magnificação relacional então vivida. Refletida nesse Cais das Colunas mítico e coreográfico onde o sul se anuncia ritmicamente. Embora esse apelo viesse para mim de outras latitudes. É na transposição interior desse sul bafejado pelo vento Zéfiro que o filme assenta como ilha. Uma ilha onde o Corto Maltese sugerido por José Álvaro Morais acompanha os navios que chegam e partem do Tejo. Enquanto caminha sobre casas e sedimentos civilizacionais em ruínas. No final do filme troquei umas palavras breves com o realizador. Contei-lhe ter ido até Mértola por causa do seu filme. E fiz referência às cegonhas que filmou em ritual de acasalamento. E que eu não encontrei na minha passagem. Respondeu-me que aquelas cegonhas tinham-se tornado residentes. Que já não faziam mais as migrações costumeiras de inverno. E eu fiquei picado por esse sul cálido e benfazejo a norte que fixava as cegonhas à terra para sempre. E que me dava tanta vontade de voltar a casa. Foi assim que a ilha evoluiu a partir do filme. Uma ilha que aquele bailado do marinheiro a bordo do cacilheiro tão bem sublima. Como um lugar improvável de flamingos. Numa visita mais recente a Pompeia reparei numa casa identificada como sendo de Zéfiro e Flora. O que reforçou a minha consciência do sentido eruptivo da ilha. Porque o Zéfiro que hospedo dentro é uma paisagem indissociável das ruínas. Mas, acima de tudo, porque existe Flora ainda oculta nesse filme. Mas não nos dois filmes seguintes. E porque existe em ambos uma relação primordial profunda. Projetada no presente feito um peixe-lua espectral que nada em silêncio no abismo. Se tu te transformasses em Zéfiro eu transformava-me em mar. Se tu te transformasses em mar eu transformava-me em navio. Se tu te transformasses em navio eu transformava-me novamente em Zéfiro. Se tu te transformasses novamente em Zéfiro eu transformava-me em Flora. Para voltarmos assim ao começo do mundo. A ilha em que o Zéfiro se tornou é parte de um arquipélago renaturalizado pela vegetação bravia. Em estado de redenção suspensa até ao reencontro derradeiro de Zéfiro e Flora. Numa projeção do infinito feita a partir da coluna sem fim de Brancusi. É “um sentimento difícil de explicar”. Porque é uma ilha que se move. E há uma viagem como a de Ulisses pelo meio que não acaba. 

Zéfiro e Flora, João Acciaiuoli Catalão



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